Quem tem poder na empresa?
Reinaldo Bulgarelli, 27 de setembro de 2015
A
noção de privilégio nem sempre está presente quando falamos de diversidade, a
não ser para criticar a promoção da igualdade de oportunidade e de tratamento
justo. Dizem que isso sim é promover privilégios para os grupos ausentes ou em
situação de vulnerabilidade. Falta de senso de justiça, dos riscos ou dos
impactos negativos que a injustiça pode causar a uma empresa e seus negócios.
Outro
dia, durante um evento do Fórum de Empresas e Direitos LGBT, ouvi mais um
daqueles relatos sobre o conflito entre pessoas evangélicas e pessoas LGBT. A
história é sempre a mesma. Alguém, alegando que isso não é de deus, se sente no
direito de pedir a expulsão de pessoas LGBT da turma. O estranho é que a
conversa não fica apenas com a liderança imediata, mas segue até a presidência
da empresa e ali, muitas vezes, fica dando voltas sem uma solução. Gera
reflexões, mas a ação demora a acontecer.
Fosse
o contrário, uma pessoa LGBT pedindo para falar com a chefia sobre seu incômodo
em trabalhar com alguém evangélico, teria a mesma audiência? Será que o
presidente da empresa pararia tudo para dar atenção ao caso? Por que parou para
dar atenção a este caso? Qual é a dúvida? Esse é um identificador de poder nas
organizações. Para quem damos atenção numa reclamação como essa, mesmo que
absurda e desumana, revela quem tem poder na empresa.
O
segundo identificador de poder é o que trata da forma como foi resolvido o
conflito. Na ausência do entendimento sobre poder e vulnerabilidade, tratam
todos em pé de igualdade. Claro que todos merecem respeito, mas um lado é tão
empoderado que se sente até na obrigação de exigir o extermínio do outro lado.
E param para ouvi-lo! Estão dizendo “ou eles, os LGBT, ou nós”, os que se acham
moralmente obrigados a corrigir tudo e todos à sua imagem e semelhança. Isso é
de uma arrogância e violência gigantes. Para ter essa atitude, estão sendo
encorajados a isso e acreditaram totalmente na ideia de que são especiais.
O
outro lado, contudo, nem pode falar sobre sua orientação sexual ou identidade
de gênero dentro da família, não pode andar de mãos dadas com seu amor pelas
ruas, não tem seus direitos básicos reconhecidos, enfim, tem que enfrentar
barreiras o tempo todo a ponto até de introjetar, muitas vezes, a visão do
opressor. Imagine ter que enfrentar essa guerra santa no local de trabalho?!
Precisam de mimo? Não, precisam é de proteção ao se reconhecer que há um lado
frágil nesta situação e outro lado que está abusando e exigindo privilégios em
nome de algo que nem nas normas da empresa está escrito. Quem manda na empresa
são os valores que constituem sua identidade ou a interpretação que um pastor
faz de um dos textos sagrados de uma determinada religião?
Há
relatos dizendo que os “rejeitados” nem esperam a resolução do conflito. Eles
mesmos abandonam o grupo, talvez resignados à homofobia, talvez desconfiados da
seriedade de seus líderes, talvez com a certeza de que a corda vai arrebentar
do lado mais fraco. É recomendável ir à luta, mas é compreensível esse abandono
do barco diante de algo que parece ser uma barreira gigante e intransponível.
Nos dois últimos relatos que ouvi, ressalte-se o fato de não serem conflitos
envolvendo altos executivos, mas jovens em programas de iniciação profissional.
E tudo parou porque conta deles? Sim!
Portanto,
não se pode colocar todos no mesmo nível. Um lado é poderoso e o outro
desconfia se a organização irá reconhecer ou não seu direito a tratamento justo
e igualitário. Um lado, o poderoso, parece se achar no direito de cobrar da
organização o que entende ser a única verdade possível. O outro lado nem sempre
tem essa noção de direito porque é impactada negativamente pela imposição da
heterossexualidade como o normal (heteronormatividade), o aceito, o valorizado,
o único lado que foi considerado nas regras e normas da empresa. Não trate todo
mundo igual porque há disparidades, desvantagens, assimetrias, injustiças que
esse tipo de igualdade de tratamento apenas vai aprofundar. Trate todo mundo igual
na condição de gente, portanto, não é possível conferir uma superioridade a uns
em relação a outros.
O
terceiro identificador de poder diz respeito ao conteúdo que está sendo trazido
no conflito e na resolução dele. Um lado, o religioso, está praticando um
crime, a discriminação, e pedindo para a empresa fazer o mesmo. Querem excluir
as pessoas LGBT pelo fato de serem LGBT. Fizeram algo? Não é isso que está em
discussão. Numa das situações em que fui consultado, a pessoa de recursos
humanos me disse que não poderia repreender os evangélicos só por serem
evangélicos. Claro que não!
Porém,
deveria repreendê-los por serem arrogantes, malvados, por estarem praticando
algo criminoso, violento, imoral e que contraria os valores da empresa. Não
basta? Já com o outro lado, raramente a queixa envolve algum gesto, ato ou
prática concreta de desrespeito, o que pode acontecer, evidentemente. A pessoa
passou a mão em alguém, disse algo desrespeitoso, fez alguma coisa que pode ser
interpretada como gesto de ódio, assédio sexual, está exigindo exclusão quando
se espera o respeito e a inclusão? A queixa, na imensa maioria das vezes, é
contra pessoas que são o que são e não por terem feito alguma coisa.
O
que fizeram de errado? Algumas queixas ocorrem porque as pessoas não parecem
ser heterossexuais ou cisgeneros. Às vezes nem são pessoas LGBT, só se parecem
com ou não se assumem como tal, mas já basta para incomodar. Outras queixas
ocorrem porque as pessoas disseram ser homossexuais ou disseram ser pessoas
trans. Estas, as trans, quiseram tratamento pelo nome adequado, uso de
sanitário correspondente à identidade de gênero, respeito pela sua condição.
Pronto, o mundo vem abaixo!
Também
houve o caso de um profissional de RH que pediu para os homossexuais pararem de
dizer que eram homossexuais porque isso era um “problema” muito íntimo e que
não era correto ficar esfregando na cara dos outros a sua “opção” sexual. Um
gestor me contou que exigiu que a mulher trans continuasse utilizando o
vestiário masculino porque ali era o lugar correto para ela. Foi demitida
alguns meses depois. Não eles, nem o gestor, mas ela. Ao contar, nem desconfiou
de sua própria incompetência, apenas da inadequação da vítima.
Todas
as pessoas, até mesmo as que se utilizam da religião para humilhar, excluir e
praticar violência contra alguém, merecem respeito. Não se pode sair estapeando
as pessoas ou expondo-as ao ridículo no grupo, apesar de estarem se colocando
numa situação ridícula e, muitas vezes, em público. Estão se achando, portanto,
pensam que podem se expor em público porque são donas da verdade. Não cabe a
ninguém da empresa, muito menos que tem algum poder, sair contando sobre o mau
procedimento dos criminosos.
O
que não se pode é dar tanta importância a uma expressão de preconceito,
portanto, que se concretiza em ato de discriminação ao gerar a demanda da
exclusão. Não se deve acolher um pedido absurdo porque é assim que se lida com
pedidos absurdos. A situação pode exigir medidas educativas e/ou punitivas, mas
sempre com a certeza de que ninguém tem o direito de pedir a exclusão de alguém
por suposta superioridade na condição de gente.
O
que não se pode é deixar a situação sem resolução, chegando até altas esferas
na organização ou fora dela, porque não se sabe o que fazer. Dizer que não sabe
o que fazer é se colocar do lado errado, oferecer risco à organização e não
apenas às vítimas de discriminação. Como assim, não sabe o que fazer!?
O
Código de Conduta da Empresa pode não falar da situação específica daquela
pessoa que apela para a religião para não cumprir com os compromissos éticos da
organização, mas os princípios gerais certamente estarão ali. Em outras
situações semelhantes, há dúvidas com este mesmo grau de espanto e paralisação
ou apenas quando elas envolvem religião e sexualidade?
Já
houve tempo em que era mais comum alguém pedir ao chefe para excluir a mulher
da equipe porque ali não era lugar para ela. Hoje, apesar de ainda acontecer e
muito, o fato já foi problematizado. Um candidato negro continua sendo
rejeitado porque é negro e a pessoa pode desavergonhadamente dizer abertamente
que a rejeitou por este motivo, mas poderá receber algum comentário crítico e
ir parar na delegacia de polícia. Falta problematizar a homofobia.
No
caso da homofobia, há uma inércia solidária em quem recebe a demanda e não
apenas uma falta de parâmetros, normas ou leis mais explícitas. Pode até ser
que os nossos documentos organizacionais precisem ser melhorados para
explicitarem o óbvio, mas vamos reconhecer que há uma incompetência motivada
pela homofobia, pela heteronormatividade, pela má vontade em tomar posição por
um lado que não é ainda reconhecido efetivamente como sujeito de direitos. Há
uma covardia, até mesmo quando se tem consciência de que algo está errado numa
demanda do tipo “ou eu ou ele”.
Dá
preguiça sair do lugar comum, do conforto, ter que fazer de outro jeito o que
sempre foi feito do mesmo jeito, ter que pensar sobre coisas que antes não se
tinha que pensar, ter que resolver demandas novas que semana passada nem se
apresentavam. Dá preguiça e isso é compreensível, assim como é compreensível
que esta empresa tenha grande dificuldade em inovar, em ser criativa e estar
conectada com a realidade onde realiza suas atividades e negócios. Dá preguiça
sobreviver no mercado nos dias de hoje. Falam até em direitos humanos e
negócios como algo integrado, um jeito de ser, de fazer, de se relacionar com
os diferentes públicos!
Para
alguns, isso é mesmo muito difícil e a solução é uma só: atualize-se nestes
temas relacionados a gente ou tire a preguiça do caminho. As pessoas estão
diferentes, certas características, como a orientação sexual e identidade de
gênero, assim como uma religiosidade fundamentalista, arrogante e criminosa,
estão presentes e se expressando no mundo virtual e real, nas ruas e no ambiente
empresarial.
Sem
abertura para o autoconhecimento, autocrítica, autodesenvolvimento e
aprimoramento das práticas de gestão, temas como esse do colaborador religioso
que pede para a empresa cometer um crime de discriminação, uma violência, uma
prática antiética que contraria a própria ética da organização, continuarão a
ser tratados como se fosse a coisa mais normal do mundo. Não é. O privilégio
existe quando alguém se dá o direito de roubar a cena, colocar as regras apenas
ao seu dispor e para seu benefício próprio. Sempre que isso acontece, houve
incompetência, omissão ou cumplicidade de muita gente, sejam colegas ou
gestores.