Reinaldo Bulgarelli
12 de agosto de 2012
O machismo produz impactos horríveis na vida das mulheres executivas. Elas são boicotadas, traídas, deixadas para trás, têm que escutar bobagens sobre as mulheres ou sobre elas mesmas, mas se recusam a assumir o lugar de vítimas.
Talvez façam isso por uma altivez suicida, ingenuidade ou por efeito do próprio machismo assimilado com facilidade por muitas mulheres, afinal, como sempre gosto de lembrar, o machismo é ideologia que anda por todas as cabeças e não apenas pela dos homens.
Também há a pressão da sociedade atual dizendo que ninguém no mundo das empresas e dos empreendedores pode parecer fraco, frágil, vulnerável. É proibido demonstrar dúvida, dores, medos, se arrepender de algo ou parecer que sentiu a paulada que realmente aconteceu.
Você pode sofrer traições, humilhações, boicotes, assédios, discriminações descaradas, mas é mais digno, nesta lógica esquisita dos tempos atuais, fingir que nada acontece e seguir em frente com um sorriso estampado. “Ops, passou um caminhão em cima de mim, mas não foi nada e já estou de pé novamente.”
É uma cultura estranha. Elogia-se exageradamente quem luta contra uma doença, como se a morte não fosse uma possibilidade da vida. Assumir a derrota é inaceitável e o bonito é lutar sempre até o fim. Ou fingir que está tudo bem, mesmo quando não está. A felicidade é uma obrigação e ela precisa ser ostentada o tempo todo, pegando mal demonstrar tristeza, depressão, descontentamento.
Os fortes não choram, não reclamam, não desistem jamais e, aí está o problema, podem também não querer lutar por seus direitos, denunciar injustiças, dizer que algo não vai bem. Quando se é minoria, no sentido político, de não ter voz nem vez, é honroso fingir que as barreiras não existem e demonstrar coragem ou que se é igual a todo mundo.
Mas a desigualdade está dada, a injustiça está presente. Mesmo assim, a qualquer preço, é importante dizer que se é igual a todos e que não se quer tratamento diferenciado, de coitadinho. Jamais, dizem, pareça ser diferente. O aceitável é ser igual. E lá se foi a possibilidade de adição de valor.
Somos diferentes uns dos outros e do padrão dominante. Por isso mesmo alguns de nós enfrentam barreiras e estão em situação de desigualdade ou de injustiça. Mesmo assim, o correto é não se fazer de vítima, mesmo sendo, mesmo enfrentando crueldades. O bacana é dizer que se é igual, que quer tratamento igual, que a diferença não importa.
Em país de baixa participação, com muito discurso sobre cidadania e pouca prática, todos falam em respeito aos direitos, mas quase ninguém fala das diferenças, das crueldades da discriminação e das dores da injustiça. É feio assumir-se vítima delas. Bonito é ser igual, se esforçar e, assim, vencer.
Temos quase 90% de homens em cargos executivos nas 500 maiores empresas do Brasil e isso quer dizer que as mulheres não se esforçam e por isso não chegam lá? É isso que escuto e é isso que precisamos enfrentar para mudar a realidade.
Não tem coisa mais triste que alguém se fazendo de coitadinho ou querendo ficar no lugar subalternizado que lhe foi imposto, assumindo que não nasceu mesmo para lutar e muito menos para vencer. Mas também acho que não tem nada mais horrível do que alguém querendo esconder o golpe duro que levou ou as feridas do tombo.
Não é humano e nem postura cidadã. Muito menos contribui para mudar as coisas para melhor nas organizações. Sem assumir a realidade, vivendo de fantasias, como construir organizações melhores em um mundo melhor, coisa que todo mundo diz querer?
Para as jovens mulheres que entram no mercado de trabalho por meio da legislação da aprendizagem eu sempre digo para prestarem atenção no fato de serem mulheres. Parece esquisito ter que dizer isso, mas é que elas estão dopadas pela onda individualista que ensina que o esforço é trará resultados.
Alerto para o fato de que estão entrando em território masculino, masculinizado e masculinizante. O mesmo vale para os gays, os negros, os jovens com deficiência, sem esquecer outras situações e o próprio fato de que a juventude é desprezada neste mundo adulto, adultocêntrico e adultizante, que só vê valor no que é “maduro”, experiente, pronto.
O alerta não é para construírem trincheiras, empunharem armas contra inimigos, ficarem com pé atrás, mas para assumirem o que são num mundo que não gosta do que são, preparar-se para o diálogo, para a troca, sempre a partir da realidade e não da fantasia de que tudo é lindo, lindo está e lindo ficará se houver esforço.
O padrão dominante que, aliás, é uma ficção, já anda bastante “sensibilizado” para respeitar as minorias e está até mesmo mostrando as garras sempre que alguma pequena ameaça ao seu poder se apresenta. Resta agora “sensibilizar” as minorias para deixar de querer ser igual (a quê ou a quem?) e apreciar a diversidade.
As chamadas minorias dão sua contribuição criativa e inovadora, como dizia Luther King, quando se assumem como são, denunciam o golpe sofrido, apontam problemas e participam ativamente da busca de soluções. Fora disso, é o mundo do faz de conta e mais tempo levaremos para mudar a situação atual.
* Publicado originalmente no Blog da Rede Ubuntu - http://www.redeubuntu.com.br/blog/%C3%A9-proibido-dizer-que-doeu-mesmo-quando-est%C3%A1-doendo-e-muito
Este é um blog sobre valorização da diversidade que também reúne artigos, notícias, comentários e informações variadas sobre o tema e suas interfaces com sustentabilidade e responsabilidade social empresarial. Estou também reunindo aqui (quase) tudo que sai publicado com minha participação, como artigos, entrevistas, livros, notícias, facilitando que sejam encontrados em um só lugar. Boa leitura! Reinaldo Bulgarelli
Mostrando postagens com marcador diversidade; diversidade cultural. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador diversidade; diversidade cultural. Mostrar todas as postagens
sábado, 18 de agosto de 2012
terça-feira, 24 de abril de 2012
O importante é a diversidade de ideias?
O importante é a diversidade de ideias?
Por Reinaldo Bulgarelli*
Nossas organizações empresariais já não são por demais brancas, branqueadas e branquejantes, masculinas, masculinizadas e masculinizantes, heteronormativas, "davincianas"1 quanto à imagem do homem perfeito no círculo nada plural da existência?
Se alguém duvida, basta ler jornais ou, com um pouco mais de interesse, procurar a pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas no Brasil e Suas Afirmativas, do Instituto Ethos e do Ibope. Segundo o último estudo, de 2007, tínhamos 96,5% de brancos, 89,5% de homens e 99,6% de pessoas sem deficiência no quadro executivo das empresas. É um lugar no qual são tomadas decisões importantes sobre as atividades da empresa num país plural, diverso e em rápido e profundo processo de mudança.
Eduardo Barros, do Info Money, escreveu que “se você é homem, de cor branca e de meia-idade, com diploma de curso superior e sem deficiência física alguma, saiba que está muito mais próximo de conquistar um cargo de direção numa grande empresa brasileira do que qualquer outra pessoa que não se enquadre nesse perfil." Ele não está errado. A conversa sobre mérito, portanto, é mentirosa ou é malfeita. Quero acreditar na segunda hipótese.
Se essa falta de diversidade não é problema para alguns, para muitos significa atraso, incoerência com os próprios valores, prejuízo para as empresas no seu diálogo com o presente e com o futuro, com os clientes atuais e com aqueles que se espera atrair numa sociedade plural e ao mesmo tempo com muitos problemas para aceitar e valorizar sua diversidade.
"O mais importante é a diversidade de ideias" é uma frase repetida com ares de seriedade e quer, talvez, demonstrar compromisso com valores mais profundos, preocupação com o que é realmente importante: a alma. Por que separar o que nasceu junto, corpo e alma? Quem diz esse tipo de coisa se alimenta, passeia pelas ruas, assiste TV ou apenas paira em etéreo lugar?
Eu costumo chamar essa falsa valorização da diversidade de "almificação dos viventes". E mesmo essa proposta de focar nas almas é engraçada, porque não se trata de almas com vivências inteligíveis, mas "almas cósmicas", "supraterrestres", sem história, sem vida, sem nada a dizer.
Numa empresa qualquer, se alguém cruzar nos corredores com alguma ideia flutuando fora de um corpo, melhor chamar a segurança, acionar o alarme e pedir para evacuarem o prédio. Ideias importantes ou as ideias que importam não andam por aí descoladas de um corpo, de um alguém que as concebeu. Seria uma ideia ruim, ingrata ou delinquente, ao andar por aí sem seu corpo.
Criticamos Taylor e todos que querem reduzir os trabalhadores, mesmo os moderníssimos trabalhadores da era do conhecimento, a uma mera "mão de obra", mas essa coisa de dizer que a diversidade importante é a das ideias não é nada diferente. É como se dissessem: "O que importa são suas ideias e não você. Pendure todo o resto lá fora e venha já trabalhar, sem trazer sua vida, seu corpo, sua história, suas concretudes, as vivências que o corpo lhe deu, suas dores, suas alegrias, sua sexualidade, suas crenças, suas contribuições, suas expectativas ou visões de mundo. A tarefa precisa ser realizada e para isso queremos apenas sua alma a serviço do nosso padrão". Deve ser por isso que falta vida em tantas organizações. A vida como ela é, com qualidades e defeitos, fica do lado de fora.
Há uma empresa na qual grande parte dos negros raspam o cabelo. Eu fico feliz ao ver que, pelo menos, nessa empresa há tantos negros a ponto de serem notados. Por outro lado, fico sempre me perguntando quem foi que mandou os negros rasparem a cabeça. É o racismo impregnado nas paredes. Será que os gestores, mandantes, coniventes ou omissos com o fato, não percebem que junto com os cabelos vão embora as ideias? Ideias e cabelos vivem juntos. Reprimem os cabelos, desprezam o que é próprio da pessoa e eliminam do cenário uma característica, mas também estão desprezando, eliminando uma possibilidade, uma perspectiva, enfim, a riqueza da diversidade.
Quem deixa de contratar alguém por alguma característica dessas que não lembram uma alma incolor, insípida, amorfa, inodora, indelével, invisível, está também deixando de lado um cliente, um fornecedor, uma comunidade, uma possibilidade de ter sucesso. Alguém em sã consciência pode deixar de lado uma possibilidade?
Toda essa "almificação dos viventes" é coisa de gente que também não deve gostar muito da frase do poeta Paul Valéry: "O que há de mais profundo é a pele". É na pele que mora a alma. Se não respeitamos nem a pele, quanto mais a alma! É pela pele que somos hierarquizados, jogados, muitas vezes sem mérito algum, no topo das organizações ou, sem reconhecer qualidades na diferença, somos jogados na rua, excluídos ou assassinados.
Por meio de nossas características concretas, corpóreas, como ser branco ou negro, homem ou mulher, alto ou baixo, gordo ou magro, ter 20 ou 50 anos, ser hétero ou gay, possuir ou não deficiência, é que entramos em contato com o mundo e desenvolvemos nossa essência, nossa identidade, trocando, interagindo e não pairando no espaço, longe do nosso tempo e lugar.
No mundo dos negócios, tão objetivo, concreto, por vezes cartesiano demais, a frase sobre as "ideias que importam" soa estranha, mas é uma face da ineficiência e a demonstração cabal de que as ideologias racistas, machistas, homofóbicas, entre outras, transcendem a lógica do lucro.
Nada importa mais do que manter as coisas como estão, o mundo "chique" intocável, a "normalidade" reinante, mesmo que para isso tenhamos que perder dinheiro por desprezar parcelas imensas da população que, aliás, são o tal mercado interno que hoje nos salva das crises internacionais.
As empresas não pairam acima ou isoladas das ideologias. Algumas ideologias são mais poderosas que tudo, mesmo afastando as empresas da efetividade, da adição de valor aos acionistas ou ao conjunto de stakeholders, na versão mais sustentável e socialmente responsável.
"A diversidade de ideias é a mais importante" é frase de gente que está colocando a empresa em situação de alto risco. Leve as ideias "almificadas" para o tribunal quando for pagar multa por racismo, por exemplo, para ver se o juiz aceita essa argumentação com os números da demografia interna que o mercado de trabalho apresenta.Talvez até funcione, mas gente séria não cai nessa conversa.
E a chamada lei de cotas para contratação de pessoas com deficiência? Quando será cumprida, se o que importa são as ideias? Quem defende essa proposta irá ajudar a empresa a pagar a multa? Não sentem vergonha de desumanizar o que é humano? Tão poucas mulheres em cargos de liderança! Vamos culpá-las também e dizer que não querem trabalhar, apenas cuidar da própria vida? O mais importante são as ideias... Dos homens, claro!
Por fim, quem diz que o mais importante são as ideias, e não essa história de ficar monitorando a demografia interna em relação a raça, cor, gênero e outras "bobagens", deveria rever seus conceitos. Quer dizer que há empresas contratando pessoas com deficiência, mulheres, negros, homossexuais, pessoas com mais de 45 anos, entre outros, que não têm ideias? Não é estranho? Ou essa afirmação quer dizer que só os homens brancos é que têm ideias ou que só eles têm as ideias que importam?
Se a diversidade de ideias é mais importante do que a outra, a que trata de incluir gente inteira e não pela metade, cindida entre corpo e alma, gente e cultura, porque é que não estão ouvindo suas ideias? Ou será que estão contratando todas essas pessoas e não estão ouvindo suas ideias?! Isso é desperdício, totalmente contraproducente e indicaria que nossas equipes precisam urgentemente de uma boa capacitação, porque estão jogando dinheiro pela janela.
Diversidade cultural é diversidade humana. Não há cultura sem gente e nem gente sem cultura. Nada que afeta a vida dos homens e das mulheres, incluindo o machismo, está fora do mundo ou separado da diversidade cultural. Se diversidade cultural é termo utilizado para falar de outras culturas, sobretudo de outros países – o que é mais chique do que ficar preocupado com o número de mulheres na liderança –, cabe lembrar que há homens ou mulheres nos outros países. Sim!
Diversidade cultural ou diversidade de ideias são na verdade novas maneiras de dizer velhas coisas: "Estamos pouco ligando se você precisa de rampas para chegar à empresa, porque quem nos interessa é quem consegue subir as imensas escadarias que filtram tudo que consideramos ruim por não se parecer conosco e com o que achamos bom".
Essa cisão entre pessoas e ideias, diferente da ironia que fiz neste artigo, é expressão de cinismo. Não é coisa que pode fazer parte do ideário de nenhuma empresa, muito menos das comprometidas com o novo, com a inovação, com a superação de desafios.
Mais do que nunca, as empresas modernas precisam de pessoas inteiras, íntegras, para encontrarem conjuntamente, cooperando umas com as outras, as soluções para os problemas que suas próprias escolhas lhes trouxeram. Como garantir sucesso ouvindo apenas algumas ideias, e não todas as ideias? Quem está "sobrando" nessa conversa anacrônica, possui ideias que, somadas às outras, podem fazer toda a diferença. Ouça o que as chamadas "minorias" têm a dizer e enriqueça sua vida e sua empresa.
* Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação, organização que assessora empresas em sustentabilidade e responsabilidade social empresarial.
________________________________________
1 Bulgarelli usa o termo “davincismo” como sinônimo de discriminação à pessoa com deficiência. É que Leonardo da Vinci cristalizou a imagem do "homem perfeito" (o Homem Vitruviano) em muitas mentes. Mas, para o autor, há muitas possibilidades de ser humano. A deficiência é uma delas.
________________________________________
Nossas organizações empresariais já não são por demais brancas, branqueadas e branquejantes, masculinas, masculinizadas e masculinizantes, heteronormativas, "davincianas"1 quanto à imagem do homem perfeito no círculo nada plural da existência?
Se alguém duvida, basta ler jornais ou, com um pouco mais de interesse, procurar a pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas no Brasil e Suas Afirmativas, do Instituto Ethos e do Ibope. Segundo o último estudo, de 2007, tínhamos 96,5% de brancos, 89,5% de homens e 99,6% de pessoas sem deficiência no quadro executivo das empresas. É um lugar no qual são tomadas decisões importantes sobre as atividades da empresa num país plural, diverso e em rápido e profundo processo de mudança.
Eduardo Barros, do Info Money, escreveu que “se você é homem, de cor branca e de meia-idade, com diploma de curso superior e sem deficiência física alguma, saiba que está muito mais próximo de conquistar um cargo de direção numa grande empresa brasileira do que qualquer outra pessoa que não se enquadre nesse perfil." Ele não está errado. A conversa sobre mérito, portanto, é mentirosa ou é malfeita. Quero acreditar na segunda hipótese.
Se essa falta de diversidade não é problema para alguns, para muitos significa atraso, incoerência com os próprios valores, prejuízo para as empresas no seu diálogo com o presente e com o futuro, com os clientes atuais e com aqueles que se espera atrair numa sociedade plural e ao mesmo tempo com muitos problemas para aceitar e valorizar sua diversidade.
"O mais importante é a diversidade de ideias" é uma frase repetida com ares de seriedade e quer, talvez, demonstrar compromisso com valores mais profundos, preocupação com o que é realmente importante: a alma. Por que separar o que nasceu junto, corpo e alma? Quem diz esse tipo de coisa se alimenta, passeia pelas ruas, assiste TV ou apenas paira em etéreo lugar?
Eu costumo chamar essa falsa valorização da diversidade de "almificação dos viventes". E mesmo essa proposta de focar nas almas é engraçada, porque não se trata de almas com vivências inteligíveis, mas "almas cósmicas", "supraterrestres", sem história, sem vida, sem nada a dizer.
Numa empresa qualquer, se alguém cruzar nos corredores com alguma ideia flutuando fora de um corpo, melhor chamar a segurança, acionar o alarme e pedir para evacuarem o prédio. Ideias importantes ou as ideias que importam não andam por aí descoladas de um corpo, de um alguém que as concebeu. Seria uma ideia ruim, ingrata ou delinquente, ao andar por aí sem seu corpo.
Criticamos Taylor e todos que querem reduzir os trabalhadores, mesmo os moderníssimos trabalhadores da era do conhecimento, a uma mera "mão de obra", mas essa coisa de dizer que a diversidade importante é a das ideias não é nada diferente. É como se dissessem: "O que importa são suas ideias e não você. Pendure todo o resto lá fora e venha já trabalhar, sem trazer sua vida, seu corpo, sua história, suas concretudes, as vivências que o corpo lhe deu, suas dores, suas alegrias, sua sexualidade, suas crenças, suas contribuições, suas expectativas ou visões de mundo. A tarefa precisa ser realizada e para isso queremos apenas sua alma a serviço do nosso padrão". Deve ser por isso que falta vida em tantas organizações. A vida como ela é, com qualidades e defeitos, fica do lado de fora.
Há uma empresa na qual grande parte dos negros raspam o cabelo. Eu fico feliz ao ver que, pelo menos, nessa empresa há tantos negros a ponto de serem notados. Por outro lado, fico sempre me perguntando quem foi que mandou os negros rasparem a cabeça. É o racismo impregnado nas paredes. Será que os gestores, mandantes, coniventes ou omissos com o fato, não percebem que junto com os cabelos vão embora as ideias? Ideias e cabelos vivem juntos. Reprimem os cabelos, desprezam o que é próprio da pessoa e eliminam do cenário uma característica, mas também estão desprezando, eliminando uma possibilidade, uma perspectiva, enfim, a riqueza da diversidade.
Quem deixa de contratar alguém por alguma característica dessas que não lembram uma alma incolor, insípida, amorfa, inodora, indelével, invisível, está também deixando de lado um cliente, um fornecedor, uma comunidade, uma possibilidade de ter sucesso. Alguém em sã consciência pode deixar de lado uma possibilidade?
Toda essa "almificação dos viventes" é coisa de gente que também não deve gostar muito da frase do poeta Paul Valéry: "O que há de mais profundo é a pele". É na pele que mora a alma. Se não respeitamos nem a pele, quanto mais a alma! É pela pele que somos hierarquizados, jogados, muitas vezes sem mérito algum, no topo das organizações ou, sem reconhecer qualidades na diferença, somos jogados na rua, excluídos ou assassinados.
Por meio de nossas características concretas, corpóreas, como ser branco ou negro, homem ou mulher, alto ou baixo, gordo ou magro, ter 20 ou 50 anos, ser hétero ou gay, possuir ou não deficiência, é que entramos em contato com o mundo e desenvolvemos nossa essência, nossa identidade, trocando, interagindo e não pairando no espaço, longe do nosso tempo e lugar.
No mundo dos negócios, tão objetivo, concreto, por vezes cartesiano demais, a frase sobre as "ideias que importam" soa estranha, mas é uma face da ineficiência e a demonstração cabal de que as ideologias racistas, machistas, homofóbicas, entre outras, transcendem a lógica do lucro.
Nada importa mais do que manter as coisas como estão, o mundo "chique" intocável, a "normalidade" reinante, mesmo que para isso tenhamos que perder dinheiro por desprezar parcelas imensas da população que, aliás, são o tal mercado interno que hoje nos salva das crises internacionais.
As empresas não pairam acima ou isoladas das ideologias. Algumas ideologias são mais poderosas que tudo, mesmo afastando as empresas da efetividade, da adição de valor aos acionistas ou ao conjunto de stakeholders, na versão mais sustentável e socialmente responsável.
"A diversidade de ideias é a mais importante" é frase de gente que está colocando a empresa em situação de alto risco. Leve as ideias "almificadas" para o tribunal quando for pagar multa por racismo, por exemplo, para ver se o juiz aceita essa argumentação com os números da demografia interna que o mercado de trabalho apresenta.Talvez até funcione, mas gente séria não cai nessa conversa.
E a chamada lei de cotas para contratação de pessoas com deficiência? Quando será cumprida, se o que importa são as ideias? Quem defende essa proposta irá ajudar a empresa a pagar a multa? Não sentem vergonha de desumanizar o que é humano? Tão poucas mulheres em cargos de liderança! Vamos culpá-las também e dizer que não querem trabalhar, apenas cuidar da própria vida? O mais importante são as ideias... Dos homens, claro!
Por fim, quem diz que o mais importante são as ideias, e não essa história de ficar monitorando a demografia interna em relação a raça, cor, gênero e outras "bobagens", deveria rever seus conceitos. Quer dizer que há empresas contratando pessoas com deficiência, mulheres, negros, homossexuais, pessoas com mais de 45 anos, entre outros, que não têm ideias? Não é estranho? Ou essa afirmação quer dizer que só os homens brancos é que têm ideias ou que só eles têm as ideias que importam?
Se a diversidade de ideias é mais importante do que a outra, a que trata de incluir gente inteira e não pela metade, cindida entre corpo e alma, gente e cultura, porque é que não estão ouvindo suas ideias? Ou será que estão contratando todas essas pessoas e não estão ouvindo suas ideias?! Isso é desperdício, totalmente contraproducente e indicaria que nossas equipes precisam urgentemente de uma boa capacitação, porque estão jogando dinheiro pela janela.
Diversidade cultural é diversidade humana. Não há cultura sem gente e nem gente sem cultura. Nada que afeta a vida dos homens e das mulheres, incluindo o machismo, está fora do mundo ou separado da diversidade cultural. Se diversidade cultural é termo utilizado para falar de outras culturas, sobretudo de outros países – o que é mais chique do que ficar preocupado com o número de mulheres na liderança –, cabe lembrar que há homens ou mulheres nos outros países. Sim!
Diversidade cultural ou diversidade de ideias são na verdade novas maneiras de dizer velhas coisas: "Estamos pouco ligando se você precisa de rampas para chegar à empresa, porque quem nos interessa é quem consegue subir as imensas escadarias que filtram tudo que consideramos ruim por não se parecer conosco e com o que achamos bom".
Essa cisão entre pessoas e ideias, diferente da ironia que fiz neste artigo, é expressão de cinismo. Não é coisa que pode fazer parte do ideário de nenhuma empresa, muito menos das comprometidas com o novo, com a inovação, com a superação de desafios.
Mais do que nunca, as empresas modernas precisam de pessoas inteiras, íntegras, para encontrarem conjuntamente, cooperando umas com as outras, as soluções para os problemas que suas próprias escolhas lhes trouxeram. Como garantir sucesso ouvindo apenas algumas ideias, e não todas as ideias? Quem está "sobrando" nessa conversa anacrônica, possui ideias que, somadas às outras, podem fazer toda a diferença. Ouça o que as chamadas "minorias" têm a dizer e enriqueça sua vida e sua empresa.
* Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação, organização que assessora empresas em sustentabilidade e responsabilidade social empresarial.
________________________________________
1 Bulgarelli usa o termo “davincismo” como sinônimo de discriminação à pessoa com deficiência. É que Leonardo da Vinci cristalizou a imagem do "homem perfeito" (o Homem Vitruviano) em muitas mentes. Mas, para o autor, há muitas possibilidades de ser humano. A deficiência é uma delas.
________________________________________
Artigo publicado
no boletim do Instituto Ethos em junho de 2010
Assinar:
Postagens (Atom)