domingo, 15 de agosto de 2010

25 anos de Criança Esperança

Reinaldo Bulgarelli, 18 de agosto de 2010

O show ontem foi bacana. 25 anos do Criança Esperança e eu quero aqui também comemorar esse tempo de mobilização a favor dos direitos da criança e da juventude. Interagi de muitas maneiras com o Programa, mas gostaria de lembrar aqui o início e o contexto de seu surgimento.

Eu fui "educador de rua" ou, como mais tarde Dom Luciano Mendes de Almeida nos batizou, "Educador Social de Rua". Desde 1978 eu conhecia esse universo da população em situação de rua e em 1985 algumas organizações que atuavam com crianças e adolescentes fundaram o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Fui um dos fundadores e membro da coordenação nacional. Fui também responsável pela elaboração do projeto de Centros de Formação, que contou com a contribuição de Paulo Freire.

Nesta atuação como educador social de rua, sempre procurei atuar com dois propósitos fundamentais, dentro do contexto de participação ativa na redemocratização do país: contribuir para que as crianças e adolescentes em situação de rua encontrassem soluções melhores para sua realidade já a partir daquele lugar em que estavam, e contribuir na construção de políticas públicas, leis, metodologias, pedagogias que fossem coerentes com uma sociedade democrática e uma nova visão sobre os direitos humanos da criança e do adolescente. Era como ter um olho na rua e outro na sociedade, que precisava ser mobilizada para novos entendimentos, posturas e práticas.

Foi uma época muito importante para o país. Estávamos saindo do regime autoritário e em breve teríamos a desejada nova Constituição, com possibilidade de nela revermos a relação entre o mudo adulto e o mundo infantil.

O “Criança Esperança” surgiu em 1986 exatamente neste momento de democratização do país, de mobilização da sociedade para a geração, promoção e defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, que resultou no artigo 227 da Constituição (1988) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Era preciso sensibilizar a população brasileira e colocá-la em contato com novos valores para que saíssemos da fase autoritária, assistencial-repressiva, para uma fase de efetivo respeito ao cidadão criança e adolescente, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

O contato do Movimento com o UNICEF era intenso. Éramos os interlocutores que representavam a sociedade civil organizada. Salvador Herencia, responsável pela área de comunicação do UNICEF, nos procurou com a ideia da parceria com a Globo para realizar um programa que mobilizasse a sociedade para a doação de recursos. Todos nós víamos nesta proposta uma oportunidade para também sensibilizar a população do país para esta nova visão sobre a infância e adolescência. Didi era a figura central desta proposta e a Globo se colocou de corpo e alma no projeto.

Mas nem tudo foi simples. Éramos lideranças do movimento popular e tínhamos grande desconfiança da Globo. Ela representava para nós uma organização comprometida com o regime autoritário. Seria capaz de defender os direitos da criança? Apesar das resistências internas, Bené, coordenador do Movimento e a pessoa que nos representou no primeiro show, firmou a parceria e lá estávamos todos inaugurando uma nova fase no país, na qual fomos aprendendo a estabelecer alianças e parcerias para garantir bons resultados no desenvolvimento socioeconômico, político e cultural.

Tudo foi elaborado em conjunto. O nível de precariedade e mesmo amadorismo do primeiro programa que foi ao ar era impressionante. Pensamos, por exemplo, em fazer arrecadação em ruas movimentadas de São Paulo, já que não existia ainda o sistema de arrecadação de recursos por telefone, internet, lotéricas e outras modernidades que foram sendo implementadas ao longo destes anos. Enfim, as coisas não nascem prontas e tudo foi muito bonito nesta fase de implantação de uma proposta que hoje é consagrada.

A imagem que me vem do primeiro Criança Esperança é a do Didi, Roberto Carlos, o pessoal do UNICEF e o Bené, com o elenco da Globo, cantando a música de encerramento do show. É uma imagem das novas articulações que se consagraram nestas décadas e a imagem da emoção. No começo, eu nem entendia direito porque tanta emoção, mas ver nossos artistas e uma emissora tão importante a serviço da infância, falando de temas que pareciam dar nó apenas na garganta de quem os vivenciava, explica tudo. É sempre uma emoção ver nossa gente unida, saindo do seu lugar, fazendo algo mais, superando divergências para trabalhar a favor de uma causa nobre.

Aquele início do Criança Esperança foi um momento único e que simbolicamente representava uma nova fase para o Brasil. Precisávamos lutar por nossas posições, mas a superação dos problemas e a conquista de novos patamares, como foi se confirmando ao longo da história, aconteceriam com articulações, união de esforços e muita parceria entre todos os setores da sociedade.

Nós, que atuamos na promoção e defesa dos direitos humanos da criança e do adolescente, devemos muito ao Criança Esperança por vários motivos.

Ele ajudou a sensibilizar a sociedade brasileira para a visão que estávamos construindo e que se consolidou no artigo 227 da Constituição de 88, assim como no Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Os parlamentares e movimento social em geral compreenderam melhor o que estávamos propondo. Isso facilitou articulações, criou o ambiente favorável que precisávamos para sair do anonimato ou da mensagem em pequenos espaços para a mensagem que atingia o grande público.

Ele efetivamente é um programa de esperança. Ao longo dos anos, o Criança Esperança foi apresentando propostas inovadoras e passando mensagens importantes, de que era possível fazer algo diferente do modelo autoritário, assistencial-repressivo. Havia na época de criação do programa, um conjunto robusto de práticas inovadoras na atenção a crianças e adolescentes. O Criança Esperança foi espaço de divulgação destas propostas e facilitou que fossem assimiladas nas políticas públicas, na maneira nova de entender e atender esse público.

A mensagem do Criança Esperança tem sido ainda mais importante ao trazer relatos de vidas transformadas, de pessoas que se reinventaram, que demonstraram o potencial que tinham e que uma proposta pedagógica adequada era capaz de revelar. É uma oportunidade rara de enfrentar o conservadorismo que defende que as pessoas não mudam, que a pobreza é um destino, que "pau que nasce torno, morre torto", entre outras crenças que afrontam quem trabalha com crianças e adolescentes nas situações das mais difíceis. Há histórias lindas de transformação por meio de um gesto solidário, uma palavra, uma proposta diferente, um projeto que atenda necessidades e, mais que isso, respeite direitos, que ofereça perspectivas, a elaboração de um novo projeto de vida, enfim, que ofereça esperança.

Eu aprendi e aprendo muito com o Criança Esperança. Ele representa nossa capacidade de transformação. Nós, do Movimento, nos transformamos. A Globo demonstrou sua imensa capacidade de transformação, sua postura plural e criativa para estar presente e ser significativa no novo momento do país nesta área dos direitos humanos da criança e do adolescente. Os programas sociais, governamentais e não governamentais foram se transformando nesse processo de mobilização, exposição de novas práticas e criação de novas referências. As empresas privadas e públicas foram percebendo que também podiam fazer algo mais pela sociedade e rumaram na direção de práticas socialmente responsáveis com foco muito forte no investimento social privado voltado à educação de crianças e adolescentes.

Enfim, todos nos transformamos, não apenas as crianças e adolescentes beneficiadas pelo Criança Esperança. Não é verdadeiro o número de 4 milhões de crianças beneficiadas com as doações. Fizemos muito mais e por muito mais gente, mobilizando o país para agir com esperança em cada história de cada criança, mas na história maior que estamos construindo juntos.

Hoje temos novos desafios pela frente, mas esta história deve ficar em nossa lembrança como referência de um tempo no qual encontramos pontos em comum, mesmo com tantas diferenças e até divergências. Um país melhor para todos precisa dessa esperança. Parabéns a todos nós por termos o Criança Esperança.