terça-feira, 9 de julho de 2013

Se não faz sentido, não merece nossa dedicação

Amigos consultores da Nhanderú lançaram seu site e tive o privilégio de ser o primeiro entrevistado na série que investiga o novo sentido do trabalho. Segue um trecho da entrevista e o link para o site.

"Eu trabalho pra viver, neste sentido de trabalhar para poder me expressar, ser, estar no mundo atuando em temas nos quais eu acredito. Também vivo pra trabalhar porque viver é trabalhar pra mim. Não consigo separar muito bem onde começa minha vida pessoal e minha vida profissional. O trabalho é uma fonte de renda, claro, mas também fonte de aprendizado, de dedicação, de interação com a realidade. É uma forma de desenvolvimento no qual o trabalho me faz tanto quanto eu faço o trabalho."

http://www.nhanderu.com.br/index.php

sábado, 1 de junho de 2013

Maioridade penal e os direitos humanos de crianças e adolescentes

Sim ou não à maioridade penal?
Reinaldo Bulgarelli
01 de junho de 2013

Dizer não à maioridade penal tem sido uma forma de reafirmar o sim aos direitos humanos da criança e do adolescente, sobretudo de expressar o compromisso com um projeto de país justo e, por isso mesmo, sustentável.

Não se trata de ficar analisando a idade com a qual uma criança já é capaz de saber o que é certo e errado. Nós, adultos, já temos idade para saber para onde queremos ir e assim decidimos na Constituição de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Ele propõe uma forma de ser, não apenas de fazer isso ou aquilo, de ter esta ou aquela ferramenta para melhorar, por exemplo, a questão da segurança pública.

Não estamos vivendo um retrocesso, mas a luta de interesses que sempre esteve presente antes, durante e depois da promulgação do ECA. Há quem queira um país no qual os jovens, sobretudo negros e pobres, vivam encarcerados antes mesmo de se tornarem jovens. Há quem acredite, como eu, que uma medida socioeducativa pode ser uma oportunidade para um futuro melhor para todos, não apenas para o próprio jovem.

O ECA não apenas propõe um modelo de sociedade que promove direitos básicos e fundamentais para todas as crianças e adolescentes, mas expressa os princípios desse projeto de país também diante do adolescente que comete um ato infracional, mesmo hediondo, como alguns que temos visto ultimamente e que são divulgado com alarde. E os outros tantos crimes cometidos contra os jovens, sobretudo pobres e negros, porque não merecem o mesmo alarde? Mas esse é outro aspecto da mesma discussão e que nos leva de novo ao projeto de país que o ECA representa.

Cabe refletir se estamos ajudando a população a entender essa proposta do ECA para quem comete ato infracional quando reafirmarmos apenas a importância da educação, da saúde, da atenção aos direitos básicos como preventivos à violência. Isso é o óbvio, mas é preciso mostrar que o ECA tem uma proposta das mais celebradas do mundo quando se trata de lidar com a violência cometida por crianças e adolescentes. Há resistências na implantação do modelo que alimentam uma profecia autorrealizável. Não investem, colhem os resultados da incompetência e culpam o modelo proposto pelo ECA para confirmar sua tese de que “essa gentinha não tem jeito mesmo”.

Cabe refletir também sobre como estaríamos hoje se o ECA não tivesse sido implantado, mesmo que em tantos lugares ainda tenhamos juízes, promotores, policiais e governadores operando com o antigo Código de Menores na cabeça, que melhor representa sua visão de mundo. Pelo ritmo com que a sociedade vem mudando, o antigo Código de Menores teria nos levado ao colapso. É o ECA, mesmo com tantas resistências, que está nos salvando.

A violência e o ódio nunca nos levaram a lugares mais seguros, no entanto, muita conversa em torno dos casos bárbaros envolvendo adolescentes carregam mais ódio e violência do que qualquer coisa que possa nos levar a soluções efetivas. Parece que ser mais do que a barbárie do "olho por olho, dente por dente". Onde nos levará tanto discurso raivoso e carregado de ódio?
 
E que tal discutirmos como o ECA poderia ser referência na revisão do sistema proposto para os crimes dos adultos? Será que a situação não estaria melhor? Ou alguém ainda acredita que o sistema atual serve à sociedade? Quantas cadeias mais serão necessárias para responder a este modelo de justiça e segurança pública que temos atualmente?
 
Nem estou falando de governantes incompetentes ou corruptos, mas de sistemas ou modelos que precisam ser repensados com a mesma energia com que se quer simplesmente trancafiar ou mesmo exterminar os jovens.

Ninguém está contente com a situação atual, mas a escolha que faremos é entre estes dois modelos e o projeto de país que eles representam. Queremos soluções para o problema da segurança pública e não adianta dizer que o caldo entornou lá atrás quando direitos não foram assegurados. Isso é o óbvio.

É tempo de reafirmar que o ECA também representa uma solução para aquele jovem que cometeu um ato bárbaro neste momento de sua vida, com tudo que lhe acontece e que acontece neste instante. É neste momento que ele também precisa ter assegurados seus direitos e isso representa assegurar o direito de todos pela qualidade e efetividade da resposta oferecida a seu ato. Um modelo efetivo de enfrentamento do problema da violência praticada por crianças e adolescentes existe e ele interessa mais ao bem-estar de todos do que os discursos manipuladores.
 
Esse líderes e autoridades que bradam contra o ECA são, em geral, os mesmos que deveriam garantir a segurança da população. Mas, basta conferir em seus discursos e práticas, são os mesmos que jamais olham para os jovens negros e pobres com a crença de que podem ir muito além do que o cercadinho que se quer lhe impor. Sim, eles podem e estão indo além do cercadinho.

Podemos voltar para o tempo da arbitrariedade e da violência sem igual contra os direitos humanos dos mais jovens ou podemos implementar efetivamente o projeto que aponta para um futuro melhor. Sempre estaremos neste embate com as forças conservadoras, portanto, vamos aproveitar para explicitar os projetos de país em questão.

Eu não quero viver no século daqueles sujeitos da ditadura, uns mortos-vivos que ainda assombram o cenário político do país só porque não fomos capazes de enfrentar a verdade daqueles tempos. Felizmente, o país não é mais o mesmo. Tem muita gente querendo respostas efetivas para seu sentimento de insegurança e tem esse "entulho autoritário" manipulando qualquer discussão para provar suas teses de que o país seria bem melhor sem o seu povinho, a tal “gente diferenciada” que agora também tem vez e voz, bem diferente do que acontecia na ditadura.   

Vamos aproveitar esses momentos de embate para mostrar que há uma Constituição e muita competência para encontrar as soluções para os jovens violentos tanto quanto há soluções para este sociedade que parece querer ser cada vez mais violenta, a depender dos mortos-vivos que nos assombram. Mas não é e não será porque somos muito melhores que isso. O ECA representa o que há de melhor como projeto de país que pensa suas crianças e adolescentes como sujeitos de direito, portanto, que constrói um futuro muito melhor e sustentável para todos.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

O mundo empresarial e os direitos LGBT

Empresas e os direitos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros
Reinaldo Bulgarelli, 31 de maio de 2013

O feriado promete 3 milhões de pessoas na 17ª edição da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo. É a maior Parada do mundo! Segundo a ABRAT GLS - http://www.abratgls.com.br/, o evento movimento mais de R$ 400 milhões na capital paulista. É o segundo evento mais importante para a economia da cidade e o que traz mais turistas para a cidade. O turismo deste segmento cresce 20% ao ano, segundo o Ministério do Turismo. O público gasta, em média, 30% mais do que outros turistas.

Essa abordagem mercadológica do evento complementa seu propósito: dar visibilidade ao movimento pelos direitos LGBT. E o mundo empresarial? Se há tantos recursos envolvidos, milhões de pessoas e um segmento cada vez mais visível e exigente, não seria óbvio que as marcas procurassem, no mínimo, apresentar-se como simpáticas à causa? Não tem sido assim. Diferente do que acontece nos EUA, Canadá, na Europa e em países asiáticos, aqui o conservadorismo se sobrepõe a argumentos mercadológicos ou até interesseiros.

A lógica capitalista não funciona diante do apelo comercial de um evento desta magnitude. Nem mesmo as grandes empresas relacionadas ao turismo, como hotéis, agências de viagem, entre outras, querem ver suas marcas associadas ao seu ganha-pão. Tenho alertado as empresas que um dia a comunidade LGBT também poderá ter vergonha das marcas que a ignoram ou rejeitam.

Uma pressão dos consumidores da comunidade e seus simpatizantes poderia fazer a diferença no final das contas. São milhões de pessoas sem um posicionamento político em relação ao consumo, mas que podem mudar do dia para a noite essa postura. A sociedade tende a caminhar por espasmos e demoniza, de uma hora para outra, um produto, serviço ou marca. Eles passam a encarnar tudo de ruim que há no mundo e o extermínio é a solução para todos os males da humanidade.

Não defendo esse tipo de postura. A demonização leva à absolvição maniqueísta de todos os outros comportamentos insustentáveis. A demonização é pontual, isola um inimigo dentro de um sistema mais amplo no qual todos, incluindo quem demoniza, também possui suas responsabilidades. Além disso, eleger inimigos a serem eliminados indistintamente nem sempre permite enxergar aliados em potencial na busca de soluções. O maior inimigo dos homossexuais e transexuais é a homofobia e não os heterossexuais, apesar deles se apresentarem, na maioria das vezes, como a encarnação desta ideologia e suas práticas de violência. Elas envolvem desde práticas de extermínio à desconsideração na hora de planejar políticas públicas ou estratégias de venda de um produto, passando pela chacota desrespeitosa, mesmo nos círculos que se dizem cultos e modernos.

Uma ideologia como a homofobia e suas variadas expressões, pode colocar uma empresa em risco, afasta-la de talentos, de clientes, de resultados financeiros ou lucros e, mais importante, de sua própria identidade, onde está inscrita sua missão, visão e valores. Quando se escolhe a homofobia como conduta, negando direitos a empregados e empregadas, tomando partido a favor de homofóbicos que não toleram a existência do outro e o respeito à diversidade sexual, coloca-se em dúvida a declaração de identidade da organização. Se é assim neste caso da homofobia, será que respeito, excelência ou qualquer outro princípio do negócio serão mesmo importantes?

Felizmente, já há um movimento consistente dentro de grandes empresas que está gerando aprendizados e construindo pontes na direção do respeito a todas as pessoas em sua diversidade sexual. Mais do que isso, há empresas que estão se antecipando na promoção dos direitos LGBT, encontrando formas de incluir a todos em benefícios e políticas que atendem ao princípio da igualdade de direitos.

Um termômetro para você, trabalhador ou trabalhadora, reconhecer se está numa empresa respeitosa para com os direitos LGBT é verificar se houve comunicação interna sobre o dia 17 de maio, dia internacional contra a homofobia. Sua empresa não disse uma palavra sobre a Parada do Orgulho LGBT que acontece em várias cidades do país? Não fez uma nota sobre o dia 17 de maio?

Essa fragilidade em relação a algo básico, como a igualdade de direitos, poderá manifestar-se ou já está se manifestando em relação a outros temas importantes para seu sucesso e ou o sucesso dos negócios. Prepara-se para deixar a empresa ou para ajuda-la a lidar melhor com a diversidade humana. Eu gosto mais da segunda alternativa, mesmo que seja arriscado, difícil e que gere críticas de quem você nunca imaginou. O que você tem feito contra a homofobia?

Entrevista para a Kultrafro sobre a questão racial

Bulgarelli, Diversidade e Sustentabilidade

Postado 19 de março de 2013 por Redação kultafro em Entrevistas                                         

 
Por Leno F. Silva
 
Reinaldo Bulgarelli é sócio diretor da Txai, empresa de consultoria na área de sustentabilidade e com forte atuação no tema da valorização da diversidade. Atua com direitos humanos e desenvolvimento desde 1978, quando foi um dos fundadores do grupo de jovens da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos de São Paulo. É autor do livro “Diversos Somos Todos”, Editora de Cultura, 2008.
Kultafro –  Os negros representam mais de 50% da população brasileira. Na sua opinião, nos últimos 10 anos essa participação também significou ascensão social e maior poder de compra. Isso também representou menos pré-conceito?

Bulgarelli -Os últimos dez anos foram fantásticos para a população negra em vários campos, incluindo ascensão social e o maior poder de compra. Só a questão do acesso à universidade é um dado que merece muita atenção de todos. A ascensão social da população negra é uma forma de enfrentamento do racismo, mas ele tem muitas faces. Com maior presença em lugares antes frequentados apenas por brancos, vemos que está aumentando significativamente o número de casos de discriminação racial. Foi publicado no Correio Braziliense esses dias que duplicaram as denúncias entre 2010 e 2011 (http://www.correiobraziliense.com.br/). Será o que o Brasil está ficando melhor na questão das relações raciais? Vemos tantos casos explícitos de racismo que é difícil responder positivamente à questão. Há ainda quem diga que não somos racistas, o que é também muito preocupante.

Kultafro –   Qual a sua avaliação sobre as cotas? De que forma elas contribuem para uma maior equidade social?

Bulgarelli – Eu fui sempre muito favorável às cotas no âmbito das políticas públicas, não apenas na educação. E os resultados têm demonstrado que elas são um sucesso em relação aos universitários negros. Temos hoje milhões de estudantes negros que tiveram acesso ao ensino superior por conta das cotas. É a formação de uma elite intelectual e poderá ser uma elite econômica participando em espaços antes reservados apenas aos brancos. É preciso lembrar que cota é meio e não fim. Ela enfrenta o racismo, no sentido desta negação do direito a compor a elite do país, mas não dissolve como num passe de mágica a discriminação racial. Talvez até acentue, como disse antes, porque a elite branca tem dificuldade de dividir seu espaço. Uma forte manifestação do racismo que enfrentamos ainda é a colocação profissional destas pessoas formadas, mesmo que nas melhores universidades do país. Os números do mercado de trabalho ainda não melhoraram na proporção desta inserção da população negra na universidade. Merece atenção das empresas, mas também do Estado brasileiro.

Kultafro –  Os negros têm pouca participação em cargos executivos, principalmente no mundo privado. Como podemos avançar nesse contexto?

Bulgarelli – Numa organização, como nas empresas com as quais trabalho, acho que o mecanismo da cota não funciona quando utilizado para não se fazer nada. Sempre lembro aos profissionais das empresas que cotas são meio e não fim, que as ações afirmativas não se reduzem a cotas e que, com cotas ou sem cotas, o importante é ter um bom plano de ação. Só definir cotas não resolve no âmbito de uma empresa. Uma empresa séria e bem intencionada irá construir um plano de ação que independe das cotas para acelerar os resultados ou impactos na demografia interna. No entanto, eu já estou convencido de que os últimos vinte anos foram suficientes para as empresas se organizarem e atuarem fortemente no enfrentamento do racismo. Elas não o fizeram e os dados têm demonstrado isso. Portanto, eu entenderia que o Estado precisa começar a discutir mais seriamente o estabelecimento de cotas nas empresas pequenas, médias e grandes, a exemplo do que acontece com a pessoa com deficiência.

Kultafro –   Historicamente a mulher negra é duplamente discriminada. O que é preciso ser feito para mudar essa triste realidade?

Bulgarelli – É preciso que o enfrentamento do racismo e do machismo aconteçam de maneira integrada no Brasil. Um sem o outro não tem efetividade. Ainda para citar o exemplo da pessoa com deficiência e o sistema de cotas, vemos se repetir com eles essa preferência por brancos e homens, mesmo dentro de um sistema de cotas. Defendo que o Estado deve pensar a questão de maneira mais ampla, considerando cotas no mercado de trabalho, por exemplo, para muitos segmentos, mas garantindo impacto positivo nos indicadores de maneira integrada. A própria sociedade civil precisa criar espaços mais fortes de articulação entre as diferentes causas. Parece utópico, no sentido de inatingível, mas é importante que cada segmento da população encontre formas de manifestar solidariedade a outros segmentos discriminados. A cultura da apartação no Brasil tem algo de comum a todos.

Kultafro -Como se explica a adesão tão grande à parada do Orgulho LGBT e pouca mobilização quantos aos direitos e reivindicações desses mesmos cidadãos na esfera do trabalho e das políticas públicas?

Bulgarelli -Precisamos entender o mundo do trabalho como o espaço privilegiado para se produzir a desigualdade. Eu trabalho com a ideia de que este espaço é parte do problema, portanto, precisa e pode ser parte da solução. Nem a ascensão social da população negra, a grande mobilização em torno dos direitos da população LGBT, da mulher, da pessoa com deficiência, entre outros, tem alcançado resultados positivos na proporção desta lucidez da sociedade ou dos esforços realizados por todos para se qualificar profissionalmente o trabalhador brasileiro. É a discriminação fazendo seus estragos e deixando que aspectos culturais ou ideológicos contaminem práticas de gestão e conceitos como mérito, competência, entre outros. Se houvesse essa objetividade que o mundo empresarial diz prezar, não teríamos os dados atuais. Por isso é tão importante para as empresas enfrentarem a discriminação porque ela é inimiga do mérito e causa prejuízos imensos para as pessoas, para os negócios e para a sociedade.

Kultafro –  A formação, o empreendedorismo, a economia criativa e o acesso às novas tecnologias, em articulação com políticas públicas inclusivas, podem contribuir para que as classes historicamente discriminadas consigam transformar as suas realidades?

Bulgarelli – Tem sido assim e é evidente que as pessoas buscam alternativas quando encontram portas fechadas. A mulher tem buscado alternativas diante deste fechamento do mundo empresarial para acolher, por exemplo, a gravidez. Porém, entendo que as pessoas querem se dedicar a novos campos de criação e novas formas de acesso a recursos financeiros por escolha e não porque é a única alternativa que lhes resta. A discriminação, paradoxalmente, tem ajudado e muito a fortalecer o empreendedorismo no país, já que outras portas estão fechadas e rejeitam a diversidade. Essas novas expressões dentro da economia só se fortalecerão, contudo, quando encamparem e contribuírem no enfrentamento da discriminação. Não há paraísos nesta história e velhas estruturas racistas, por exemplo, continuarão alimentando o racismo em toda a sociedade. O que há de novo, assim como no campo do acesso do negro à educação universitária, é a formação de novas elites para combater em pé de igualdade o que lhes aflige, com voz e presença em espaços antes entregues apenas a um determinado tipo privilegiado dentro da sociedade: o homem, branco, heterossexual, sem deficiência…

Kultafro – Para você, de que forma a kultafro pode colaborar para que esse processo de transformação dos negros principalmente no mundo do trabalho e da economia, seja efetivo? 

Bugarelli – Fazendo o que está fazendo e muito bem. Dando voz às pessoas que nem sempre são ouvidas em outros espaços, criando referências positivas, mostrando alternativas neste cenário de discriminação e orientando para a realização de práticas cada vez melhores de gestão dos empreendimentos. A Kultafro deve ser cada vez mais presente no país que está, com muita dificuldade, se reinventando, buscando novas formas de expressão de sua maneira de ser e de realizar seu projeto de nação. Ter espaços como este para se enxergar, se identificar, ver que os esforços de cada um encontram uma multidão de outras pessoas interessadas nesta reinvenção, é muito prazeroso. Torço para que a própria comunidade valorize o site, apoie, garanta seu sucesso e permanência, bem como torço para que as grandes empresas vejam na Kultafro um canal importante de diálogo com a comunidade negra e todos os negócios que giram em torno de suas propostas. Fico muito satisfeito com essa iniciativa porque ela torna o meu país melhor para mim e para todos.


Passeata do movimento negro, 1979. O Reinaldo é o menino que aparece na
foto logo abaixo da letra “m”, da palavra Empregos p/ negros, na faixa.

sábado, 18 de maio de 2013

Meio ambiente, direitos humanos e o desenvolvimento sustentável


A sustentabilidade e seus mundos em conflito
por Reinaldo Bulgarelli
17 de maio de 2013

Empresa sustentável é aquela que trabalha para o desenvolvimento sustentável, ou seja, uma agenda ampla que visa melhorar o mundo ou até salvar a espécie humana da extinção. É uma nova utopia, como dizem alguns, impondo-se para além da tradicional polaridade entre esquerda e direita.

Os profissionais que trabalham na área de sustentabilidade e responsabilidade social empresarial devem contribuir para que a organização aprenda o mais rápido possível a gerenciar seus impactos positivos e negativos na relação com todos os stakeholders. É um profissional que habita a intersecção entre a empresa e a sociedade, entre os setores privado, público e não governamental.

A agenda envolve aspectos econômicos, sociais, ambientais, tanto quanto aspectos culturais e políticos, entre outros, tudo junto e ao mesmo tempo. É um profissional que integra diferentes olhares porque a agenda para tornar o mundo mais sustentável assim o exige. Mas, não é tarefa fácil.

No histórico do tema no mundo, há uma apropriação dos sujeitos que atuam no campo do meio ambiente e do econômico, mais atentos aos dramas vividos pelas muitas espécies, em função do modelo de desenvolvimento destruidor da natureza. Também há uma apropriação dos sujeitos que atuam no campo dos direitos humanos, mais preocupados com aspectos culturais, sociais, políticos, com as desigualdades e injustiças que impedem o desenvolvimento sustentável.

No âmbito dos documentos produzidos pela ONU, não houve uma separação, mas uma integração dos muitos olhares. Mesmo os documentos que falam sobre o clima, por exemplo, abordam a questão com envolvimento do humano como parte do problema e da solução. O desenvolvimento sustentável é desenvolvimento humano no contexto da natureza onde todos vivem e interagem. A base do conceito é a interdependência, o sentimento de pertencimento a uma rede complexa, orgânica, sistêmica, onde tudo está interligado e não se basta isoladamente.

O diálogo, contudo, entre os sujeitos da sustentabilidade nem sempre é tranquilo. Nesta divisão grosso modo, superficial e até caricata dos que entendem sustentabilidade como meio ambiente e os que entendem sustentabilidade como direitos humanos, há visões de mundo, valores, prioridades e maneiras de agir sobre a realidade nem sempre coincidentes.

Há uma jornada de aprendizados e tentativas de superação dos reducionismos que estamos realizando para integrar visões, valores, prioridades, estratégias e maneiras de agir na realidade. As agendas dentro desta agenda maior do desenvolvimento sustentável ganham maior visibilidade e nos separam conforme a visão pende mais para um lado ou outro nesta visão grosseira que estou fazendo: meio ambiente e direitos humanos.

Enquanto a extinção do mico-leão-dourado é intolerável para a turma que dá mais atenção à questão ambiental, a turma dos direitos humanos é mais afetada pela denúncia de trabalho infantil na cadeia de negócios de uma empresa. A poluição de um rio fala diretamente ao coração do ambientalista tanto quanto a discriminação racial fala diretamente ao coração do defensor de direitos humanos.

Há profissionais da sustentabilidade para quem a agenda de meio ambiente se sobrepõe à agenda de direitos humanos e vice-versa, numa ineficiência que tornam lentos os avanços necessários para se compreender quais são os problemas e quais as soluções a serem produzidas.

Desta forma, pessoas mais ligadas à questão ambiental toleram a defesa que Marina Silva fez do deputado pastor Marco Feliciano, dizendo ser ele um equivocado e vítima de perseguição religiosa. Seus partidários mais raivosos chamam de intriga da oposição, de perseguição política a crítica à sua fala de que Marco Feliciano é um equivocado ao invés de reconhecê-lo como homofóbico e racista. Não diz nada ao coração de alguns defensores de Marina sua postura meramente religiosa e nada estadista em relação aos direitos LGBT. Para estes, mais importante é garantir que a natureza seja preservada e ela é tida como a encarnação do desenvolvimento sustentável, como se esta agenda tão rica coubesse numa pessoa ou num partido político.

Por meio das polêmicas em torno do pastor político e da política religiosa, candidata à Presidência da República, é possível perceber com clareza a divisão dentro da comunidade dos que se dizem trabalhar pelo desenvolvimento sustentável. Se há essa insensibilidade para um tema ou outro, a hierarquia infundada que sobrepõe uma causa à outra, não há compromisso com o desenvolvimento sustentável. Ele exige uma visão mais integrada e ambos os grupos perdem a razão quando toleram o intolerável, seja a destruição de uma floresta ou o assassinato de homossexuais incentivado também por discursos religiosos fundamentalistas.

Será que Marina irá nos dividir? Eu entendo que está nos dividindo, mas já estávamos divididos antes dela e agora estamos vivenciando um retrocesso neste processo difícil de reunir visões e soluções para os desafios do mundo atual. Dentro de uma empresa, no movimento de sustentabilidade e responsabilidade social empresarial, na produção teórica e nas salas de aula que tratam de desenvolvimento sustentável, esta divisão entre os que pesam mais aspectos ambientais do que humanos tende a se aprofundar. As paixões na defesa de Marina ou no ataque a ela levam junto muito do que construímos até aqui de uma agenda integrada e ampla para o século XXI.

Tarefa de todos, no meu entender, é aproveitar esse momento de conflito para explicitar suas posições e partir urgentemente para o diálogo. A questão transcende candidaturas à Presidência da República, mesmo passando por elas. O que não se pode tolerar é a “sustentabilidade meio-boca”, gente que tolera o intolerável, tem estratégias incompatíveis com os princípios de construção de um mundo sustentável e diz ser o que não é. Pode-se dizer tudo de quem tolera a destruição do meio ambiente, o racismo e a homofobia, menos que seja um profissional da sustentabilidade. Vamos aproveitar esse momento de explicitação do conflito para construir um novo patamar nesta jornada ou vamos sucumbir nesta vala moralista e de visão estreita que nos leva para o passado?

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Para o dia das mães, mesmo quando elas ainda estão do lado de fora da empresa

Mulher grávida teclando no trabalho
Para o dia das mães, mesmo quando elas ainda estão do lado de fora da empresa.

por Reinaldo Bulgarelli

O chefe quase teve um troço. A notícia da gravidez era o mesmo que decreto de falência da empresa. A área tinha quinze mulheres, todas jovens, todas solteiras, na medida da encomenda feita ao pessoal do recrutamento e seleção da empresa. No entanto, era a quinta a anunciar que sairia de licença maternidade. Anuncio feito, resta ao chefe avisar ao chefão de que não dariam conta de tanto trabalho.

E o chefão foi logo avisando que não haveria contratações para substituir as “faltosas”.  Disse que isso era praga daquela mulher demitida por ter saído de licença maternidade. Ela só havia combinado a gravidez com o pai da criança e não com o chefe. Assim que voltou, foi devidamente punida. A mulher tem que escolher porque ali era lugar de trabalhar e não de ter vida, muito menos de gerar outras vidas.

O chefe voltou pra sua sala com a firme determinação de pedir ao RH um plano efetivo para o engajamento das colaboradoras. Engravidando, não estavam sendo nada colaboradoras. Precisavam entender que a empresa queria sua entrega total pelos próximos trinta anos, nem que fosse para demiti-las nos próximos meses, ao bel prazer do chefão e sua contabilidade. O plano de engajamento de corpos e almas teria uma mensagem explicita de que engravidar seria considerada alta traição para com os valores e o sucesso da empresa.

No primeiro dia de palestras, o consultor subserviente às ordens do RH, distribuiu bombons às colaboradoras, leu poesia sobre o que era ser mulher no século XXI e deu o recado do chefe e do chefão: ou a vida ou o trabalho. Nada menos que entrega total ao trabalho seria entendido como aceitável. Disse também, alertando que era opinião pessoal, que defendia exames para identificar grávidas em processo seletivo. Ah, também disse que defendia demissão por justa causa para quem faltasse com desculpa de que tinha passado o dia na fila do pronto-socorro tentando atendimento para a criança.

Mensagem dada, os resultados foram medidos e o número de faltas diminuiu, mas a produtividade também. O clima foi medido e as mulheres eram as mais críticas. Já não eram mais as colaboradoras que colaboravam com o chefe. Lá vai o chefe de novo para a sala do chefão com o plano de demissão coletiva para contratação apenas de homens. O chefão lamentou muito porque iriam perder o enfeite da empresa, que era a mulher, o perfume da produção, a única beleza entre os barbudos da liderança, toda masculina, evidentemente. Ele lembrou-se do último dia das mães em que fizeram uma homenagem à sua querida mãezinha. Todos cantaram a música do Teixerinha, mas ele, evidentemente, não chorou. Não seria profissional.

Passada a lamúria, fizeram as contas e viram que o imenso prejuízo com as demissões compensaria. Não teriam mais essas licenças maternidades. O ajudante do chefão começou a pensar no futuro e a celebrar uma empresa sem mulheres, sem lágrimas, sem TPMs, sem a voz irritante das mulheres em seus ouvidos. O chefe lembrou-se de que não podia chamar a atenção de uma mulher que elas logo choravam. Com os homens, dizia ele, podia gritar, dar na cara, passar por cima que estava tudo bem.

O ajudante lembrou também que nem teriam mais a despesa para fazer um banheiro feminino no interior da fábrica, já que só havia um bem distante, no prédio administrativo. E por ai foi, até se darem conta de que deveriam fazer uma festa dos barbudos para celebrar a nova era da empresa. Foi agendada a festa para o dia das mães, reunindo os barbudos para cantar novamente, mas depois do expediente.

A empresa cumpriu seu plano, demitiu todas as mulheres, cerca de 20% da empresa, com direito a aperto de mão na saída, devidamente acompanhada pelos seguranças, gentis colaboradores terceirizados. O sindicato reclamou, mas nem tanto quanto da última vez em que decidiram demitir os velhinhos da empresa, aqueles sujeitos com mais de 30 anos que colocavam o plano de saúde em risco, segundo cálculos do especialíssimo consultor.

Nem no RH havia mais mulheres. Foram as últimas a serem demitidas. A empresa estava do jeito que o chefão queria. Faliu? Não. Hoje, como esta empresa, há muitas que nem têm que colocar mensagem pelo dia das mães. Mesmo assim, sobrevivem e vão pra frente. Achou que eu dizer que elas faliram? Olhe os dados do mercado de trabalho, sobretudo os dados sobre mulheres em postos de liderança. O chefão continua fazendo estragos.

Mas, e todos esses dados sobre as mulheres serem maioria da população, mais escolarizadas, mais isso e mais aquilo? A lógica do machismo não segue a lógica do mundo, mesmo a lógica do capitalista mais mesquinho. Há empresas ainda hoje que desprezam as mulheres e têm lucros exorbitantes. Não estão nem aí para as estatísticas e muito menos para a vida. Dão seu jeito, mesmo que seja complicadíssimo achar os tais talentos, desde que sejam homens.

Se o argumento é apenas esse das estatísticas, do pragmatismo ou da economia inteligente, não há muitas esperanças. O problema é o machismo, que insiste e persiste tornando possível, à custa de toda a sociedade, um mercado de trabalho masculino, masculinizado e masculinizante.

Não se trata de contrapor com uma lógica empresarial o que o próprio mundo empresarial produziu. Trata-se de reconectar com a vida como ela é e reinventar a administração à luz de novos valores e da lógica da sustentabilidade. Dá pra viver sem as mulheres e, mais ainda, obter lucros à custa de sua humilhação nas propagandas da empresa, vendendo produtos para elas sem que sejam consideradas do lado de dentro dos departamentos. Trata-se, portanto, de uma visão de mundo, da escolha de um projeto de empresa e de país. Qual é a sua escolha?
 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Igualdade racial e empresas


A promoção da igualdade racial pelas empresas



Neste artigo, o educador Reinaldo Bulgarelli enfoca os desafios atuais e as possibilidades para práticas socialmente responsáveis relacionadas ao tema.

Por Reinaldo Bulgarelli*

O movimento de responsabilidade social empresarial no Brasil já nasceu com uma agenda envolvendo a questão racial. O Instituto Ethos, desde a sua criação, trouxe para a sociedade brasileira a reflexão sobre a importância de as empresas abordarem o racismo, com foco na questão do negro. Mais do que isso, apresentou uma proposta de abordagem prática do tema por meio dos Indicadores Ethos, apoiados por um conjunto de publicações que orientam as empresas.1

Com essa atuação, o Instituto Ethos aproximou das empresas os ativistas na causa antirracismo e vice-versa, estimulando novos projetos e atividades das mais variadas no campo das ações promotoras de igualdade racial.

Algumas lições, em meio a desafios e possibilidades, podem ser colhidas neste momento, sobretudo após uma década, no mínimo, de envolvimento das empresas com a temática racial.

1. O Estado brasileiro está mais adiantado do que as empresas ao pensar o tema do racismo, ao assumir que o país é racista e ao propor legislações inclusivas, que promovem direitos e reparam os históricos e persistentes prejuízos aos negros.

2. É evidente que, diante desse atraso, as empresas terão de realizar mais esforços em prol da igualdade racial. Os dados da demografia interna das empresas, como o exemplificado no Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas 2, demonstram uma distância inaceitável entre negros e não negros.

3. A tendência é que o Estado tome medidas para acelerar os resultados no campo da inclusão do negro no mercado de trabalho, o que pode envolver o estabelecimento de cotas, dada a gravidade da situação. Assim, mesmo que a atuação mais efetiva das empresas seja importante, o tempo que já foi perdido com indiferença, negação da realidade, rejeição a ações afirmativas e ações tímidas e ineficazes faz com que a correção do Estado seja urgente. Uma parcela significativa da sociedade está exigindo ações por parte do Estado, e este, não apenas o Governo Federal, vem demonstrando apoio e iniciativas na direção das ações afirmativas, incluindo as cotas.

4. As empresas, dessa forma, precisam se capacitar urgentemente para compreender melhor a situação e agir sobre essa realidade, assimilando a possível legislação de cotas de maneira a adicionar valor a todos, incluindo os resultados nos negócios. Devem agradecer o apoio, caso a medida das cotas se concretize, diante da sua incapacidade para lidar com o tema por conta própria. O mesmo vem acontecendo com a legislação de cotas para inclusão de pessoas com deficiência e de jovens (legislação da aprendizagem). Algumas empresas já assimilaram as medidas, aprendendo com elas e tornando-as fonte de aprimoramento no relacionamento com cerca de 46 milhões de brasileiros, segundo dados do Censo do IBGE de 2010. No caso da população negra, estamos falando de 51,3%, o que representa mais de 100 milhões de pessoas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) publicada pelo IBGE em 2012.

5. A realidade do país quanto ao acesso do negro à universidade melhorou muito nos últimos anos, o que contribui para que os dados atuais de acesso a emprego e carreira no mercado de trabalho sejam inaceitáveis. A educação é um fator determinante para o sucesso no mundo do trabalho. Segundo o IBGE, na Síntese dos Indicadores Sociais 2012, o acesso ao nível superior “cresceu de 27,0% para 51,3%, entre 2001–2011, sendo que, entre os estudantes negros ou pardos nessa faixa etária3, a proporção cresceu de 10,2% para 35,8%”.4 Com um número três vezes maior de negros em relação a 2001, é intolerável que os dados do mercado de trabalho não revelem o aproveitamento dessa oferta de trabalhadores qualificados, demonstrando que há outros fatores interferindo nas escolhas das empresas. Portanto, a educação sozinha, sem ações afirmativas por parte do mercado de trabalho, não tem sido capaz de promover para os negros a mesma ascensão e benefícios dos que não são negros.

6. No âmbito das empresas, as ações afirmativas precisam adquirir maior amplitude e efetividade. São tímidas em relação à promoção da igualdade racial e, diante de tamanho desafio, precisam ser avaliadas para que se identifiquem problemas e se ganhe maior efetividade. É preciso ampliar os espaços de reflexão sobre o tema no próprio movimento de responsabilidade social empresarial. Dentro das empresas, é preciso maior envolvimento da alta liderança, com programas mais robustos em termos de beneficiados, estratégias e recursos.

7. É preciso enfrentar conceitos que persistem e que não têm ajudado as empresas a sair da situação atual. Existe a ideia de que no Brasil não há racismo, que “o problema é social e não racial”, entre outras abordagens que apenas reforçam a certeza sobre a presença exuberante do racismo, criando impactos negativos na gestão empresarial.

8. Para garantir melhores resultados, é preciso ampliar significativamente o número de ações afirmativas nas empresas, sobretudo nas maiores. Elas têm uma influência na cadeia de valor que permeia todo o mercado de trabalho, mas é importante frisar que também precisam aprender com as pequenas e médias empresas, cujos dados sobre inclusão do negro seguem outros padrões de comportamento.

9. As empresas devem explicitar que as ações afirmativas se devem aos impactos negativos causados pelo racismo na sociedade e visam corrigir os problemas, reaproximar a organização do segmento negro e reparar o prejuízo que têm com a ausência deste, uma vez que operam seus negócios numa sociedade em que a maioria da população se autodeclara negra. São argumentos racionais, dentro da lógica empresarial, que também compreendem a linguagem dos valores e da necessária sintonia com a identidade organizacional, além do compromisso para com o desenvolvimento sustentável. Impactos negativos na reputação têm custado caro a muitas empresas, que podem não aparecer no Índice Dow Jones de Sustentabilidade (DJSI), no Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) BM&F Bovespa ou no Guia Você S/A-Exame das Melhores Empresas para Você Trabalhar, por exemplo.

10. É preciso evitar discursos que, usando como justificativa as deficiências de formação da população negra, apenas fortalecem o racismo. Também a empresa tem “deficiências de formação” quando não sabe identificar qualidades naquilo que é diferente dos brancos e quando se afasta de mais de 50% da população, gerando alto impacto negativo na constituição de suas equipes, no acesso a talentos, nos negócios com a nova classe média e em outros espaços com maior presença da população negra. As ações afirmativas existem para corrigir um problema na sociedade e na organização e para acelerar resultados na promoção da equidade, retirando barreiras que impedem a empresa de acessar seus talentos por causa do racismo, e não apenas da falta de qualificação profissional dos negros. Todos os brancos, majoritariamente presentes nas empresas e nos cargos de liderança, são tão mais qualificados que os negros ou há maior tolerância com a qualidade de sua formação educacional e profissional?

11. Nossas empresas são brancas (no número de trabalhadores e líderes), branqueadas (nos rituais) e branquejantes (na pressão para que todos sejam brancos), com estruturas, sistemas e processos que refletem o nível de influência do racismo nas práticas de gestão. Logo, é importante haver uma revisão, a fim de que a composição das equipes, a comunicação com seus diferentes públicos, os produtos, serviços e demais práticas que interessam à sobrevivência da empresa no mercado sejam tão brancos quanto não brancos.

12. Ações afirmativas que não se apresentam como meio de enfrentamento do racismo e que evitam essa palavra, postura e práticas antirracistas são equivocadas. Um dos fatores que podem contribuir para os tímidos resultados observados no mercado de trabalho é que há empresas que se recusam a falar do racismo e a enfrentá-lo. Entendem que basta oferecer oportunidades por meio de alguns programas para resolver o problema. Essas ações precisam ser acompanhadas de um entendimento da questão das relações raciais no país, da questão do racismo, de suas formas de expressão no ambiente de trabalho, da relação com diferentes públicos.

13. É preciso conhecer melhor a legislação do país e as possibilidades de gestão da questão racial por parte das empresas, perguntando aos candidatos à vaga sobre seu pertencimento étnico-racial, por exemplo. A autodeclaração é uma ferramenta para essa gestão, apesar de seus limites, mas ainda há empresas que rejeitam o cumprimento da legislação, como a que trata do Relatório Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego. É de interesse legítimo da sociedade que as empresas gerenciem as informações sobre sua demografia interna em relação a raça ou cor.

14. É preciso aprimorar os programas de ação afirmativa, porque, além de tímidos, podem estar cometendo equívocos, como a criação de grupos de estagiários negros. Além de tímidos em número, os programas dessa natureza em geral funcionam de maneira paralela às práticas de gestão, não geram aprendizados para a organização e revelam baixa efetividade no aproveitamento dos estagiários em seus quadros, entre outros problemas. Uma saída, a partir do princípio da promoção da igualdade racial com ações afirmativas para acelerar resultados efetivos e aprendizados para todos, seria garantir um percentual para estagiários negros no programa de estágio da empresa. Se há defasagem em relação às exigências da empresa, o que nem sempre se confirma, ela poderia ser resolvida no próprio programa de estágio, e não nesses programas paralelos. Além disso, a falta de entendimento da questão racial tem levado algumas empresas a ter estagiários não negros até mesmo nesses programas ditos de ação afirmativa para negros, o que é preocupante. Teme-se que algumas pessoas da liderança dessas empresas usem tais programas equivocados para justificar que agiram e mesmo assim não obtiveram resultados, e que, portanto, o problema é do negro e de sua formação educacional. O problema jamais será da empresa e do racismo vigente, muito menos de seus profissionais “bem-intencionados” e seus métodos “altamente eficazes”.

15. Não há valorização da diversidade sem a realização de ações afirmativas. Também não é possível realizar ações afirmativas sem explicitar o posicionamento contra o racismo e sem agir sobre ele para além da oferta de oportunidades. Aspectos culturais e medidas concretas no âmbito da gestão, dos processos internos e do relacionamento com os diferentes públicos, ou stakeholders, precisam ser combinados para que as empresas ganhem maior efetividade e ajustem o passo com as demandas da sociedade civil e do Estado brasileiro.

As grandes empresas souberam enfrentar desafios gigantes em vários campos para se tornarem amplas e atuantes até o momento. Portanto, elas saberão enfrentar o desafio da promoção da igualdade racial. É uma exigência, mais do que uma esperança.

* Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação.

Crédito da foto: Clóvis Fabiano

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Notas

1 As publicações mais diretamente relacionadas à questão racial são Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas e O Compromisso das Empresas com a Promoção da Igualdade Racial. Indiretamente, o tema é também abordado nas publicações Diversidade e Equidade – Metodologia para Censos nas Empresas, Como as Empresas Podem e Devem Valorizar a Diversidade e Empresas e Direitos Humanos na Perspectiva do Trabalho Decente. Além disso, dentre os eventos realizados pelo Instituto Ethos, um deles foi comentado no artigo As Ações Afirmativas das Empresas pela Igualdade Racial, do presidente Jorge Abrahão.

2 Veja também dados do Ministério do Trabalho Emprego, IBGE, Ipea e Dieese, entre outros, sobre desemprego, salário/renda, carreira e aspectos relacionados ao mercado de trabalho.

3 A faixa etária a que se refere o IBGE é de 18 a 24 anos, ou seja, não são consideradas as pessoas com mais de 24 anos e o dado não trata do número total na população brasileira de pessoas com nível universitário.

4 Síntese dos Indicadores Sociais 2012, com dados referentes a 2011, divulgada em novembro de 2012.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Inclusão da criança com deficiência na escola


Inclusão da criança com deficiência: a mediocridade reina?
Reinaldo Bulgarelli, 05 de janeiro de 2013

Quadro com frase de Osho: "A vida começa
onde termina o medo."
Percebi que uma rede de blogs que tratam dos direitos da pessoa com deficiência se articulou rapidamente para comentar mais um daqueles artigos horríveis da Lya Luft. O artigo está na Veja do final de 2012. Eu não costumo ler estes artigos e “mudo de canal” para não dar ibope a quem não diz coisa com coisa. Se pelo menos buscasse argumentos, informações, mas os artigos dela apenas destilam veneno contra tudo que não seja o pequeno mundinho “classe média”, como ela mesma diz ser.

O intuito aqui não é comentar o triste parágrafo, por exemplo, onde a Lya diz o seguinte: "Segundo, precisamos, sim, rever em toda parte nossos conceitos, leis e preconceitos quanto a doenças mentais. O politicamente correto agora é a inclusão geral, significando também que crianças com deficiência devem ser forçadas (na minha opinião) a frequentar escolas dos ditos 'normais' (também não gosto da palavra), muitas vezes não só perturbando a turma, mas afligindo a criança, que tem de se adaptar e agir para além de seus limites — dentro dos quais poderia se sentir bem, confortável, feliz."

Credo! É confusão demais para alguém que vive chamando os brasileiros de medíocres (“a mediocridade reina, assustadora, implacável e persistente”, em 26 de setembro de 2012, entre outros tantos “artigos”). Mediocridade é querer escrever sobre algo que não conhece, usar sua projeção de maneira irresponsável para destilar seus conceitos medievais como se a caretice nacional nascesse do seu próprio umbigo. Não, dona Lya não vai estragar nosso dia e muito menos os caminhos que escolhemos trilhar. Seus textos medíocres ofendem, ferem a dignidade das pessoas, deixam rastros de ódio e não propõem nada, a não ser que se mantenham as coisas como estavam em mil novecentos e antigamente.

Acho melhor comentar o fato de que a inclusão da criança com deficiência na escola vai seguindo firme e forte. Converso com educadores e dirigentes de escolas públicas e privadas nos seus diferentes estágios de aplicação prática da ideia de inclusão e vejo que as coisas mudaram rapidamente nos últimos anos.

O que era apenas um conceito, hoje pode ser constatado em qualquer escola do bairro de qualquer canto do país. Não, ainda não chegamos lá e muitas coisas precisam melhorar, mas já temos muita coisa para mostrar, muitas histórias para contar e muitos resultados para avaliar.

Com esses educadores que estão trabalhando a inclusão, aprendi que eles superaram algumas posturas e práticas, como as ideias paralisantes, desqualificantes e desmobilizantes (perdoem os neologismos para garantir a rima!):
1. Ideias paralisantes - Elas negam direitos e usam discursos aparentemente críticos para manter as coisas como estão, bem longe das mudanças. Dizem o seguinte: “Enquanto toda a educação brasileira não melhorar, não há porque se falar em educação para a criança com deficiência”. E a criança, todas elas, não têm direito à educação? Tem que esperar tudo melhorar? Quem vai dar o sinal pra avisar que tudo melhorou? Tem cabimento?! Esse tipo de argumento não é o suprassumo do desprezo pelo ser humano? Você ficaria do lado de fora aguardando que alguém, um dia, melhore a escola, segundo os padrões de algum elitista de plantão, para você pisar no tapete vermelho? E enquanto isso, o que faremos?

2. Ideias desqualificantes – Elas acabam com os professores, as escolas e o país e dizem o seguinte: “Os professores são uns coitados, ganham mal, não sabem nem educar uma criança sem deficiência nas péssimas escolas que há neste país pobre e medíocre. A escola brasileira é muito ruim e esses professores desqualificados mal dão conta de suas tarefas básicas.” Os professores ganham mal, a escola brasileira não é a melhor do mundo, longe disso, mas essa moda de desqualificação está mesmo a serviço de quem? Não é o suprassumo do elitismo ficar desqualificando os pobres e quem trabalha com eles? A desqualificação tem ajudado em alguma coisa? Como alguém pode se sentir estimulado se falsos amigos defendem os professores dizendo que são coitadinhos, despreparados e incompetentes? É uma crítica que não quer ver melhoras, mas quer manter o mundinho no século passado.

3. Ideias desmobilizantes – Elas não gostam de participação e não acreditam que os sujeitos da educação poderão se envolver na busca de soluções. Dizem que são todos desqualificados: o povo e seus educadores. Portanto, como irão participar da solução? Apenas os sabidos da pátria, esse povo que nem se informa direito e já sai escrevendo artigos em revistas de grande circulação, é que poderão encontrar soluções interessantes. A vida é melhor do que suas ideias e toda escola que se dispôs a ser inclusiva está enfrentando desafios, evidentemente, mas está também encontrando soluções, construindo uma nova história da educação no país.

Na prática, no concreto, no dia a dia da vida como ela é, as escolas inclusivas entenderam que não estão fazendo mais do que a obrigação, que estão corrigindo uma injustiça gerada no passado e isso não vai ser fácil, mas tem que ser possível. E na coragem dos que não querem dormir no século passado, estão aprendendo a incluir na própria prática da inclusão, além de muito estudo, dedicação, busca por apoios dos mais variados. A inclusão é um processo, um movimento, uma busca movida a ideais muito melhores do que aqueles que movem o elitismo pátrio e nada patriótico.

O que mais escuto daqueles que avançaram para fase do fazer e não mais da conversa fiada é que a educação inclusiva melhora a escola toda, aprimora métodos, gera novas visões e práticas. Esses educadores confirmam o que disse o documento da UNESCO sobre educação inclusiva – “DECLARAÇÃO DE SALAMANCA SOBRE PRINCÍPIOS, POLÍTICA E PRÁTICAS NA ÁREA DAS NECESSIDADES EDUCATIVAS ESPECIAIS, 1994”.

Se você tem um filho ou filha com deficiência, não se assuste e muito menos se acovarde diante dessa rabugice de uma pessoa da idade média, elitista e preconceituosa. Participe ativamente do movimento por educação inclusiva e coloque todo seu conhecimento sobre seu filho e sua realidade a serviço da escola.

Não espere um mundo pronto, o mundo das coisas óbvias (é um direito e pronto!) porque estamos em fase de construção. Nesta fase, é preciso firmeza de princípios, mas é preciso também postura educativa, construtiva, parcerias para encorajar e não para congelar as mudanças.

Postura parceira, que cobra, que se indigna e tem as mais altas expectativas, caminha junto e quer soluções, não apenas constatar que o mundo é cruel para com a criança com deficiência. E não se esqueça de envolver sua criança. Ela também pode e deve participar desta construção. A tutela mais atrapalha e reforça falas de ódio à diversidade do que ajuda neste momento que estamos vivendo.

Se sua escola jamais pensou no assunto da inclusão de crianças e adolescentes com deficiência, tome coragem, assuma sua responsabilidade e atenda a uma demanda legítima da sociedade internacional, não apenas a brasileira. E pensar sobre isso pode passar pelas fases acima e que precisam ser superadas: a fase das ideias paralisantes (nada pode ser feito enquanto tudo não estiver perfeito), desqualificantes (não sabemos nada, não estamos preparados, as crianças não estão preparadas, o mundo é despreparado e horrível) e desmobilizantes (não vou pedir ajuda, não vou ouvir ninguém, não acredito que professores, alunos e seus pais possam contribuir de alguma forma).

Ouça, dialogue, converse sobre o assunto com outros educadores, conheça as experiências boas e ruins de outras escolas, disponha-se a mudar e a acreditar que é possível, além de ser um dever. Supere-se, vá além de seus limites porque quem está numa escola já faz isso cotidianamente e encontra nos desafios as condições para o desenvolvimento de todos.

Comece 2013 com algo novo para contar em 2014, até um dia em que as Lyas Lufts da vida serão lidas como se leem hoje os discursos dos nazistas, dos que defendem a eugenia, dos escravocratas, dos ditadores, dos elitistas e daqueles que só conhecem o ódio contra as diferenças. Vamos corar de vergonha pelos humanos que um dia fomos ao deixarmos crianças com deficiência do lado de fora da escola regular.

A história será outra e você ajudou a construir um novo momento, difícil, talvez, mas possível, desejável e muito melhor para todos. Não vá atrás dessa gente que odeia por odiar porque o ódio, como dizem os sábios, jamais construiu nada de bom. Tenha a coragem de viver!
1. O artigo da Lya Luft está reproduzido e comentado no site Lagarta Vira Pupa: Tenha estômago porque nem comentei um décimo das atrocidades ali apresentadas: http://lagartavirapupa.com.br/blog/tag/texto-lya-luft-veja-inclusao/

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O mundo está mais delicado e os homens estão em crise

O mundo está mais delicado e os homens estão em crise

Trabalhei intensamente as questões de gênero neste segundo semestre de 2012. Estou cada vez mais preocupado com os homens e gosto de ouvi-los para entender o que está acontecendo. Antes, pareceria piadinha machista dizer que os homens estão ficando para trás, mas o cenário está cada vez mais nítido neste sentido e é preciso agir sobre ele com o olhar da valorização da diversidade.

O olhar da diversidade

Que olhar é esse? É o olhar de quem valoriza a parceria entre homens e mulheres, que não acredita que haja atributos natos ou genéticos para explicar os papéis de gênero, muito menos a divisão sexual do trabalho. Valorizar a diversidade significa gostar de ambientes que sejam tão femininos quanto masculinos. O que se quer não é a superação de organizações masculinas, masculinizadas e masculinizantes (MMM) por organizações femininas, feminizadas e feminilizantes (FFF), mas aquelas que promovem a cooperação entre homens e mulheres como forma de efetiva construção de algo novo, revolucionário, transformador.
Organizações que valorizam a diversidade de gênero não estão apenas buscando oportunidades melhores para as mulheres, mas estão enfrentando o machismo que explica, gera e mantém essa realidade de prejuízos aos homens e mulheres. O machismo mora na cabeça de homens e mulheres, está no ar que respiramos ou no caldo de cultura no qual estamos inseridos. Portanto, nada é automático e tudo é complexo neste mundo das ideologias que podem aprisionar corações e mentes dentro de padrões que nem mesmo interessam aos beneficiados. Para manterem-se majoritariamente nos lugares de poder, os homens se utilizam do machismo para explicar sua superioridade, mas ele causa prejuízos tão grandes que a mais leve reflexão faz perceber sua inviabilidade. O preço é alto demais!
A valorização da diversidade de gênero, no sentido de melhor distribuição do poder, das oportunidades, dos recursos, da promoção do diálogo, da troca e parceria, parece ser um antídoto melhor do que apenas matar os homens ou dar o poder às mulheres. E o machismo morreria com os homens ou com as mulheres no poder? Haveria mudanças significativas, mas nada garante que o machismo não sobreviveria com novos contornos.

O machismo é inimigo dos homens e das mulheres

O machismo atua na lógica da dominação, da opressão, da discriminação e submissão de alguém a lugares na sociedade com base no sexo com o qual se veio ao mundo. A diversidade de gênero diz que todos podem aprender uns com os outros, serem parceiros com suas singularidades e histórias de vida, até mesmo essas construídas num ambiente cultural machista. Gostar da diversidade leva ao equilíbrio, a estruturas caracterizadas pela igualdade, pela justiça, pelo cuidado com a qualidade das relações.
Quem valoriza a diversidade acredita que as pessoas não nascem para isso ou aquilo, mas para brilhar. Não lida com determinantes genéticos, não naturaliza o que é fruto das relações ou das vivências numa sociedade, num determinado tempo e lugar. Valorizar a diversidade é acreditar que aprendemos e que, se somos assim hoje, podemos ser diferentes amanhã. Nada há que nos condene a um futuro assim ou assado em função do sexo com o qual nascemos. Nada há que nos impeça de levar o outro dentro da gente nesta convivência livre do machismo e na qual podemos desenvolver atributos tidos como dos homens ou das mulheres.

A armadilha que o machismo criou para os homens

O machismo não explica, apenas rotula e diz que assim sempre foi e sempre será, naturalizando desde a origem as desigualdades entre homens e mulheres porque ele é superior e ela é inferior. Superior em que e inferior em relação a quê? Ao naturalizar o que é do campo social, o machismo, essa maneira de explicar a realidade de poder, criou uma armadilha para os homens. O mundo atual está mudado e os atributos que conferiam poder aos homens agora não são mais interessantes. Mas, se é a natureza que está determinando os atributos conferidos aos homens, como eles irão realizar mudanças diante de um novo tempo, com novas exigências, um novo contexto? Não podem mudar porque suas atitudes, comportamentos e até competências estão relacionadas à natureza dos hormônios ou dos órgãos sexuais e reprodutivos. Veja que situação!

O mundo mudou?

Vamos ver um exemplo disso. Eu ando perguntando aos muitos homens que encontro nas fábricas o porquê desta concentração tão antiquada. Respondem sempre a mesma coisa: as atividades exigem força. Pergunto uma coisa e respondem outra. A empresa precisa de homens ou de gente forte? Há homens fraquinhos e mulheres fortes, portanto, a resposta não faz sentido. A divisão sexual do trabalho sempre foi injusta, mas ainda está usando argumentos que apodreceram no caminho. Empresas e seus profissionais não estão atentos ao caminho? Podem tropeçar e gerar problemas para os negócios de muitas maneiras se não estão atentos à realidade.
Quando insisto na pergunta sobre o que explica essa concentração exagerada de homens em fábricas, dizem que as causas são históricas. Era assim no começo de tudo. E não pode mudar? Não mudou ainda? Não pode mudar neste instante em que ainda, em 2012, estamos diante de tantos homens? A fala sobre causas históricas é uma artimanha do machismo. Ora ele se utiliza da naturalização das desigualdades e ora se utiliza da história, como se ambas fossem determinantes e imutáveis.
Houve no Brasil profundas mudanças no mundo empresarial. Se pensarmos nos últimos dez anos – 2002 a 2012, muita coisa mudou. Nossas máquinas[1], apesar de antiquadas e de comprometerem até mesmo a produtividade, já não funcionam na base da força faz um bom tempo. Estou falando, evidentemente, destas grandes empresas para as quais presto consultoria, mas podemos generalizar para a maquinaria e processos de trabalho das médias e pequenas também. Não teriam sobrevivido sem essas mudanças.

O machismo desqualifica os homens

Eu digo aos homens que estão se desqualificando ao justificar a presença majoritária deles desta maneira. Não há mais nenhum sujeito musculoso que só serve para carregar peso dentro das fábricas. Tudo está sofisticado, com altas tecnologias e, assim, exigências de escolaridade cada vez maiores para os trabalhadores.
Eu digo aos homens que ninguém está ali por causa da força, seja homem ou mulher. Todos estão ali porque são inteligentes e atendem às exigências deste mundo sofisticado. Devem ler manuais cada vez mais complexos, tomar decisões, fazer parte de processos interdependentes que apenas a força não daria conta de mantê-los ali. Eles ficam todos orgulhosos de si diante deste lembrete.
Acredito, aliás, que não é correto e nem verdadeiro desqualificar os homens para promover a igualdade de gênero. Constatar que todos estão ali porque são inteligentes gera outro entendimento sobre os prejuízos que a discriminação de gênero causa para as mulheres, para o desenvolvimento da comunidade e das empresas. Não é desqualificando os homens que eles poderão perceber seu papel e se engajar na construção de um ambiente de trabalho que promova diversidade de gênero. É o discurso e a prática machista que desqualifica os homens ao reduzi-los a músculos. Raramente se percebe o quanto é desrespeitoso para com os homens dizer que eles estão num determinado lugar porque ali se exige músculos.
Nem é preciso dizer que estas grandes empresas também seguem padrões sofisticados de saúde e segurança. Além de cumprir a legislação, muitas delas estabelecem limites ainda mais rígidos para os processos que exigem carregar peso. Praticamente não há nenhum momento em que alguém carregue mais de trinta quilos. Mesmo que precisassem tanto de músculos fortes, há mulheres que carregam seus filhos por toda parte, carregam sacolas de feira, carregam a dura tarefa de cuidar de uma casa e da família toda. Nisto tudo há pesos muito superiores aos existentes no ambiente moderno dessas empresas.

O pessoal está discutindo gênero no cafezinho?

As empresas e suas fábricas ou unidades com grande concentração de homens estão atrasadas. A lógica da discriminação da mulher nunca fez sentido e hoje menos ainda. Quando vemos o mundo capitalista reunido em Davos[2] discutindo que a inclusão da mulher pode causar impacto positivo no PIB dos países e das suas cidades ou comunidades, percebemos o quanto esta questão está avançando numa velocidade superior a que as empresas estão realizando. Vamos colocar o assunto na mesa de reunião ou continuaremos conversando sobre isso no cafezinho?

O mundo está mais delicado, portanto, o mundo é das mulheres!

Este mundo sofisticado da tecnologia é o mundo da delicadeza. Uso este termo de propósito porque a delicadeza é atribuída geneticamente às mulheres ou aos homens homossexuais. Mas, o mundo está mais delicado nas suas máquinas e nas suas relações. Ser gestor já não se resume a mandar e controlar como antigamente porque os subordinados são outros e querem mais de seus chefes. Há até quem fale em crise de identidade dos gestores[3]. Imagine não colocar esses assuntos nas mesas de reunião?
Trabalhar numa equipe também já não é a mesma coisa de quando começamos a vida profissional, seja você dos anos 60, como eu, ou dos anos 90. Dentro de uma mesma geração experimentamos mudanças tão intensas que admiro as pessoas com mais de trinta anos que estão nas empresas hoje. São sobreviventes ou pessoas que conseguiram realizar mudanças profundas para estar ali. Há os que apenas quiseram se adaptar, mas não sobrevivem muito tempo desta forma. Há os que participam das mudanças e, mesmo com mais idade e enfrentando muitos desafios, estão sobrevivendo num mundo completamente diferente.

Mulher é superior – a constatação

Vivemos tempos de delicadeza nas máquinas e nas relações, ou seja, um mundo para o qual as mulheres estão muito mais preparadas. Foi a educação ou o “adestramento” que recebemos que nos fizeram assim, mas hoje tudo que é atribuído à mulher ou ao mundo feminino está mais valorizado.
Não há uma revista – Você S.A., Exame, Época Negócios, Isto É Dinheiro, entre outras, que não traga matérias sobre como mulher é muito melhor do que os homens. Antes, pareciam querer provar que eram melhores, agora estão explicando como são melhores. Fato consumado.
E são melhores mesmo? Sim, são muito melhores porque têm as qualidades que se encaixam melhor a esta nova realidade. Não fosse o machismo arcaico, os dados da demografia interna das 500 Maiores Empresas do Brasil, por exemplo, seriam outros.[4] A presença majoritária dos homens em cargos de poder e a consequente masculinização do mundo está vivendo seu apogeu e, assim, seu inexorável declínio.

O perfil das vagas parece ter sido escrito para as mulheres

O perfil das vagas está com exigências que dizem respeito ao mundo das mulheres, esse que o machismo criou e que lhes atribui a delicadeza, o cuidado com os outros, inteligência emocional, capacidade de se comunicar, de se expressar, de mostrar sentimentos e lidar com eles… Quem está mais preparado para o mundo da comunicação, da interação, da delicadeza?
Diante deste mundo que se tornou “feminino”, parece que as mulheres são mais adequadas, preparadas, passando com mais facilidade nos testes, entrevistas e processos de seleção. Eles também estão em busca de atributos femininos e passa no teste, “por coincidência”, quem responde melhor ao que foi perguntado para as mulheres responderem. Não é assim que age o machismo para garantir o lugar dos homens? Agora as estruturas, na mesma lógica, se voltam contra eles dizendo que é mera coincidência que elas estejam se saindo melhor e com tendências a ocupar os lugares de poder.

Qual é o problema?

Não é esta a lógica da valorização da diversidade. Gostamos de mulheres, de homens ou de diversidade? Se gostamos da diversidade, e das parcerias, estamos caindo na armadilha de apenas substituir homens por mulheres. Elas, dizem, nasceram para dirigir empilhadeiras, para cuidar dos canteiros de obra, para cuidar do acabamento, das máquinas, da manutenção dos tratores, das equipes, dos conselhos, do comando das empresas. Se elas nasceram para isso, os homens, portanto, nasceram para ficar bem quietinhos no seu canto porque agora não servem mais para muita coisa neste mundo mudado.
É isso que chamo de armadilha do machismo. Os homens não podem aprender nada com as mulheres para que ambos desfrutem deste novo tempo juntos e juntos construam um futuro melhor?  Tudo é nato, portanto, não há aprendizados, as pessoas não mudam, a não ser tomando hormônios… Estamos abandonando os homens ao mesmo tempo em que estamos resistindo a entregar o poder às mulheres na velocidade que a realidade atual exige. Estamos num tempo de vazio e de crise, de transição entre um modelo e outro.

Tempo de realizar escolhas

É tempo, portanto, de escolher se gostamos de diversidade ou de mulheres, neste sentido machista mesmo que lhes confere atributos “naturais” para estar no poder. Os homens pagam um preço alto ao se manterem no poder à custa desta ideologia machista. Parece que agora serão as mulheres que irão pagar o preço com esta virada da seta da superioridade na sua direção. Muda a seta e estamos contentes ou queremos que mude a bussola que determina quem é superior e inferior?
Podemos passar por esta “curvatura da vara” mais rapidamente conversando sobre machismo, diversidade, a realidade atual e suas exigências para todos. Podemos rever nossos conceitos machistas e acreditar que homens e mulheres podem se reinventar para estabelecer parcerias revolucionárias. Essas parcerias de tipo novo podem até mesmo reorientar nossos rumos para um futuro mais sustentável. Se há tantos avanços tecnológicos que prescindem da força bruta atribuída aos homens, há riscos demais para a vida. Tempos de transição e de decisão. Vamos para qual direção? O que você pensa sobre isso?


[1] Revista Exame 1025, de 03 de outubro de 2012 – matéria de capa: “Porque somos tão improdutivos?” – http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1025/
[2] O Fórum Econômico Mundial se reúne em Davos, na Suíça, e publica anualmente o Global Gender Gap Report – http://www.weforum.org/reports
[3] Revista Você S.A., edição 174, dezembro de 2012  – Matéria de capa: “O chefe em crise” – http://vocesa.abril.com.br/edicoes-impressas/174.shtml
[4] Instituto Ethos/Ibope – Pesquisa “Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações Afirmativas” – http://www1.ethos.org.br/EthosWeb/arquivo/0-A-eb4Perfil_2010.pdf