O mito do amor paterno ou a construção de novas relações entre homens e seus filhos e filhas
Reinaldo
Bulgarelli
08 de agosto
de 2015
Meu pai tinha quarenta e quatro anos quando eu nasci. Era
quase um idoso para os padrões dos anos 60. Quando eu tinha dez anos, ele já
era um idoso para os padrões dos anos 70. Fui criado por um homem que foi meu pai
e meu avô. Para além do que dizem ser o papel de pai e papel de avô, percebo
que ele experimentou também uma transição e resolveu dilemas, modernoso como
era, que hoje estão mais presentes na vida dos homens.
O pai não tinha tempo para nada em seu papel de provedor, o
que trabalhava enquanto a mãe ficava cuidando da casa (como se isso não fosse
trabalho). O avô já tinha passado alguns sustos com a saúde, não trabalhava
tanto como antes e dava mais valor a passear comigo do que fazer outras coisas
em seu tempo livre. O homem nascido em 1917, meu pai, mantinha uma relação
distante, tinha uma presença pontual, forte, marcante, mas sem nenhuma
blandícia ou afagos. O homem dos anos 70, já avô, buscava corrigir o passado ou
o que lhe haviam ensinado sobre o que era ser pai, construindo comigo uma
relação que permitia expressar algum carinho, até mesmo físico.
Dizem que quando nasce uma criança, nasce também uma mãe e
um pai. Falar em nascimento de um pai faz parecer que acontece uma mágica e não
a construção de uma relação, mesmo que cercada de predefinições da sociedade
naquele determinado tempo e lugar. Li ontem uma reportagem sobre um pai de
filhos gêmeos que ficou viúvo e com os bebês para criar. A entrevista desse pai
fala da construção de uma relação: "Esses dias que estou pegando eles no
colo, estou conhecendo cada detalhe do corpinho deles: dedinhos, sobrancelha,
cheiro. Estou viciado no cheiro deles. Nessas horas eu penso, ‘é verdade, eu
sou pai!’."(1)
Meu pai, vindo da roça, como se diz, me faz imaginar quão
distante era seu pai em termos de demonstrações de afeto, como pegar no colo,
brincar junto, beijar, afagar, abraçar na hora do medo, dormir junto, enxugar
as lágrimas, falar de sentimentos, dedicar tempo para os cuidados como trocar
fraldas, dar banho e assim por diante. Essas manifestações de cuidado e afeto
eram coisas atribuídas às mães como fruto de um instinto materno, algo da
natureza das mulheres, que nasceram para ser mães e cuidar dos filhos. Aos
homens não cabia o afeto porque eram provedores, fortes, racionais, poderosos,
os que impunham a ordem, a disciplina, com a palavra final sobre tudo. Era feio
para um pai demonstrar afetos ou qualquer proximidade. O certo era a distância
para não deseducar e não transgredir os limites entre o mundo masculino e o feminino.
Elizabeth Bandinter, no livro “Um Amor Conquistado - O Mito
do Amor Materno”(2), já desconstruiu esse pensamento que naturaliza o que está
no campo da construção social e cultural. Não há uma essência amorosa em toda
mulher que a faz ser “naturalmente” levada à maternidade para ser normal e
realizada na vida. As mulheres, com o feminismo, se libertaram da sina e estão
livres para amar. Elas escolhem casar ou não casar, ter ou não filhos, exercer
a maternidade desta ou daquela maneira. Cada vez mais desejam se livrar da
culpa quando não cumprem com o que foi estipulado como natural, um instinto
básico de toda e qualquer mulher nascida para cuidar do esposo, dos filhos, da
família, da casa.
As mulheres saíram de casa para trabalhar e a maternidade
está sendo cada vez mais adiada para o fim da idade reprodutiva ou simplesmente
deletada das possibilidades. É possível ser feliz sem ter filhos. Se tem filhos,
é por escolha e não mais como um destino definido para todas as mulheres. Também
o gosto por trabalhar fora ou o gosto pela profissão, carreira, vida social, as
faz combinar a maternidade com tudo isso. Fosse o mercado de trabalho menos
avesso às coisas da vida, como a maternidade, combinariam ainda mais e melhor
esses prazeres ou tarefas. Estou falando de uma determinada classe social com
mais recursos, mas o sentimento de liberdade, mesmo com as pressões vividas
pelas mulheres mais pobres, já é maior do que o experimentado pelas suas mães e
avós.
Naquelas empresas que não querem ser amadas acima de todas
as coisas, que obrigam as mães a escolher entre viver ou trabalhar, as mulheres
se realizam mais e tudo indica que isso seja também muito positivo para o
desenvolvimento de seus filhos. Quando as regras permitem, as políticas
favorecem e a cultura interna impede o machismo de punir as mulheres na volta
da licença maternidade e nos cuidados que os primeiros anos de vida exigem dos
pais, a mulher consegue conciliar melhor suas muitas facetas e realizar
escolhas. A mulher, sem os condicionamentos impostos, tem melhores condições
para definir suas prioridades.
E os pais? Também estamos vivendo hoje o que meu pai-avô
tentou experimentar nos anos setenta. Os homens estão entendendo que devem ir
mais para casa, assim como as mulheres foram para o mercado de trabalho. Eles
não só devem, mas percebem que isso está no campo das escolhas, das
possibilidades, da liberdade de ser diferente do que foi e fez as gerações
passadas.
Como aquele pai viúvo que, por conta das circunstâncias, se
viu numa proximidade maior com seus filhos, outros pais estão “nascendo”. Eles
estão construindo uma relação de tipo novo com seus filhos e filhas. É possível
que alguns comecem a inventar o mito do amor paterno. Tomara que não. Tomara que
deem valor às escolhas que estamos realizando. Tomara que reconheçam o quanto o
feminismo está ajudando também na libertação dos homens. O carcereiro não deixa
de ser um prisioneiro, como dizem algumas feministas.
Os homens de hoje romperam com a distância imposta por
papéis de gênero que não fazem mais sentido ou que foram percebidos como
autoritários e destruidores de relações mais amorosas e edificantes para todos,
filhos e pais. Eles expressam afeto, convivem, beijam, curtem o cheirinho da
criança e até se tornam os principais cuidadores, o que era antes proibido aos homens
provedores.
Claro que há ainda um grande número de homens, como dizem os
dados, presos nos papéis definidos por outros, sobrecarregando as mulheres,
prisioneiros do machismo. Claro que o mercado de trabalho e a legislação do
país ainda determinam o que cabe “naturalmente” às mulheres e aos homens, mas
os sinais de mudança estão presentes e apontam para um futuro mais
interessante.
É um futuro no qual os homens não terão apenas cinco dias
corridos de licença, tempo oferecido pelo mercado de trabalho para registrar o
filho. Já temos algumas empresas ampliando voluntariamente a licença
paternidade por entender que isso é um diferencial na guerra por talentos, por
querer atender uma demanda que já existe por parte dos homens e por querer contribuir
efetivamente na construção da equidade de gênero. Empoderar as mulheres, como
dizemos, passa criar condições para que o homem vá mais para casa, experimente
a dor a e delícia do mundo dos cuidados, tanto quanto elas experimentam a dor e
a delícia do dito mundo produtivo.
Ser pai jamais será como antes, tomara. Se houve a
desconstrução do mito do amor materno, ele permitiu também a construção de uma
proximidade dos homens com os filhos e filhas que, talvez, nunca tenha
acontecido antes na história da humanidade. Não sei. Que os historiadores se
ocupem disso. Que é melhor ser pai hoje e será ainda mais no futuro próximo,
isso dá para dizer. Feliz dia dos pais, homens do século XXI!
(1)
http://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2015/08/licenca-maternidade-e-passada-para-pai-de-gemeos-apos-morte-da-esposa.html
(3)
Depoimento de um pai no site Pais que Educam, de
onde retirei a foto que ilustra este artigo: http://www.paisqueeducam.com.br/2014/08/20/para-um-pai-o-que-e-paternidade-ativa/