terça-feira, 20 de julho de 2010

Homenagem aos filhos

Aos meus amigos, suas mães, seus tempos e lugares


Reinaldo Bulgarelli, 19 de julho de 2010.

Nossas mães dizem que não viram o tempo passando. Quando deram conta, já éramos adultos. Dizem isso quando alguém enxerido pergunta nossa idade. Sempre tem uma tia chata ou uma amiga vingativa por perto para cumprir o papel de trazer a mãe da gente para a realidade. Coisa mais sem graça. Para nossas mães, o tempo não passa. Somos eternas crianças e nos olham sempre desse lugar de mãe. É um lugar, não é um tempo.

Filhos são eternamente filhos. Elas se assustam com nossa velhice, nossos cabelos brancos, os óculos que chegam ao nosso rosto para não mais sair. Mas os espantos são pontuais. No dia a dia, somos filhos de pegar no colo ou pra nos mandar fazer coisas: vai buscar pão, liga pra sua tia, faça isso e faça aquilo. Nossos títulos de nada valem diante da mãe. Não adianta ser Presidente da República ou um avô já acostumado com o ofício. É filho, uma condição única que tem no colo materno um lugar também único.

Tem coisa melhor que ligar pra mãe como quem não quer nada só pra ouvi-la dar um “boa noite” ou falar aquelas coisas de sempre? O colo da mãe é um lugar visitado de muitas formas. Tem quem exagere e curte o colo literalmente, mas às vezes não é preciso tanto pra sentir aquele lugar único, aquela voz única, aquele jeito único de mãe.

Se elas se assustam com a nossa velhice, imagine os filhos! A gente até percebe a velhice deles chegando. Uma hora pode isso e aquilo. Outra hora já não pode mais. E nunca mais. Aquele doce preferido? Não pode mais. Fazer aquele passeio de sempre se torna mais difícil e o mundo vai ficando pequeno pras pernas que já nos levaram e nos apresentaram ao universo. Aquela história contada à exaustão sumiu da memória. Um probleminha aqui e outro acolá, mas é um susto quando desabam de vez.

De repente aquela velhice que parecia também eterna sofre um baque, tropeça em alguma coisa inesperada e lá se vai nossa mãe pra cama. Da cama para o hospital. No hospital, para diferentes lugares, incluindo salas de exames complicados, UTI, num dia fala e noutro dia já não nos reconhece mais.

Filhos é que têm uma surpresa horrível. Outro dia mesmo estava brigando com a mãe por uma coisa qualquer. Agora passa a noite num hospital e tem uma notícia pior que a outra a cada visita dos médicos. Melhor não vê-los. Melhor sumir ou voltar pra casa e ver se passa, se tudo volta ao normal. Não volta. Entre melhoras e pioras a gente luta, faz de tudo, se entrega, se revolta, sangra, acha forças, luta, desiste, volta e fica em lugares e situações nas quais jamais se imaginou estar. Liga o piloto automático, desliga, dorme e acorda na mesma conversa com o médico, um verdadeiro dr. Jeckyll e Mr. Hide, que queremos beijar na boca e matar a facadas, tudo junto e ao mesmo tempo.

Outro dia mesmo a gente se pegou pensando na morte da mãe, mas não era nada pra agora. A perda da mãe era um lugar, não um tempo. Agora, do lado de fora da UTI, vendo a mãe pela janela entubada, sedada, amarrada em fios e mais fios de aparelhos precisos, a gente fica atônito, tomado de uma surpresa que só o afeto explica. Outros nos olham sem entender nada sobre o nosso espanto. É o tempo chegando. E quem disse que relação de mãe e filho se subordina ao tempo?

Pra nos conformar, dizem coisas que fingimos aceitar só pra não contrariar os loucos e voltar logo a atenção à aparelhagem e seus ruídos lúcidos. Só fazem aumentar nosso espanto ao querer nos conformar. Caber na forma, conformar, como?! Era pra ser agora? Porque não avisaram? Ué, a mãe envelhecia diante da gente dando todos os sinais, mas quem disse que a gente queria ver. Os olhos dos filhos não veem o tempo, só o lugar. Falam tanto do olhar das mães que se esquecem de falar do olhar dos filhos.

Espanto mesmo, daqueles de tirar o fôlego, de deixar o coração suspenso, a respiração trancada no peito, é esse de filhos que acompanham a mãe despencando no poço da vida. Quando a gente se dá conta, está no hospital. Quando atenta, não sai mais do hospital. Quando acorda do pesadelo de noites em claro, providências das mais estafantes, se vê numa conversa com o médico sobre a falta de esperanças. Vem o choro, o susto, o medo, a dor, o cansaço, o alívio de não ver sofrer e o horror da despedida. O coração sangra como num parto.

Aquela ideia de ligar pra alguém único para ouvir a voz única, o colo único, se torna impossível, uma lembrança do que foi e nunca mais será. Na morte da mãe, tempo e lugar se encontram. É um abraço apertado, um parto às avessas, um gosto de saudade antes mesmo que a saudade transbordasse de amor por todos os dias sem mãe.