domingo, 8 de maio de 2011

Dia das mães - Escolhas que precisam ser valorizadas

Dia das mães - Escolhas que precisam ser valorizadas


Reinaldo Bulgarelli, 08 de maio de 2011

Eu gosto de lembrar a minha própria vida para tratar de alguns temas. E tenho o privilégio de ter “memória de berço”. Lembro-me de passagens interessantes da infância. Nem sei o que eu estava fazendo ontem, mas certas coisas de décadas atrás eu lembro com nitidez. E neste dia das mães, porque não se lembrar da própria mãe para homenagear as mães?

Uma das histórias é sobre a minha escola e aconteceu em 1967, quando eu tinha de cinco para seis anos. Por um erro na matrícula, fui parar no primeiro ano ao invés de ir para o pré-primário. Assim chamavam. Meu pai ficou tão feliz que nem permitiu que o erro fosse sanado. Imagino que ele considerou aquilo como um vestibular ou um prêmio pela minha maravilhosa inteligência, mas foi só um erro de matrícula que me custou fazer o primeiro ano novamente. O diretor recobrou o juízo repentinamente, bem na hora de eu seguir adiante com a minha turma e, apesar das notas, repeti.

Neste primeiro ano, minha professora, por quem eu deveria ter devoção inconteste, dizia que era um erro usar a mão esquerda para escrever. Era uma imoralidade que precisava ser corrigida com castigos. Amarrou a minha mão esquerda e obrigou-me a escrever com a direita. Ela me humilhou na frente dos colegas. Justamente na frente daqueles sujeitos mais velhos que eu estava matutando um jeito para me enturmar. Quando se tem cinco anos, faz muita diferença conviver com quem tem sete.

Essa tortura durou apenas dois dias. No primeiro dia eu não disse nada em casa. Aprendi, logo de cara, que a escola era outro mundo. Todos os rituais eram assustadores e ao mesmo tempo despertavam minha curiosidade. Onde será que aquilo ia dar? Tinha que usar uniforme, levar lancheira, entrar e sair em bandos, fazer fila, fingir que cantava o hino nacional diante da bandeira brasileira, ficar em fileiras de carteiras sem poder conversar com os outros, sem ir ao banheiro (mesmo com vontade) e jamais, nunca, sob qualquer hipótese, usar a mão esquerda para escrever no meu lindo caderno novo.

Não vi diferença entre um horror e outro. Imaginei que todas as crianças eram despejadas naquele local para esse tipo de tortura. Meu pai encheu os olhos d’água quando me entregou à multidão de crianças que subiam a escadaria do Marina Cintra. Imaginei que bom lugar não seria. Era obrigatório, eu logo entendi, porque todas as crianças iam para lá e porque não encontrei brechas para negociar nada, do uniforme, bota ortopédica ao sabor do pacotinho de Lanches Mirabel.

No segundo dia, contudo, eu achei que havia algo de estranho. Eu era o único canhoto da sala e minha exposição pública atingia um nível insuportável. Desconfiei que aquela monstra tivesse saído de algum lugar do inferno porque ela o conhecia bem. Dizia que eu era filho do diabo e iria morar no inferno se continuasse escrevendo com a mão esquerda. Descrevia tudo com tantos detalhes que só poderia ser minha irmã.

Como meu pai - meu herói! - não era o diabo e jamais havia feito qualquer comentário desabonador sobre minha mão esquerda, resolvi arriscar e contar um segredo sobre a vida paralela: a escola. Meu pai ficou indignado e, como sempre, esbravejou muito, disse que a professora era ignorante, que a escola pública já tinha sido melhor. Minha mãe ficou mais calada.

Dias antes, comprando plástico para encapar os cadernos e a cartilha Caminho Suave, ela havia me dito que nunca tinha ido à escola. Mais um motivo para eu desconfiar daquele lugar, mas ela disse aquilo sentida, mostrando que a vida na roça e o fato de ser mulher não permitiam esse privilégio. Eu não sabia ainda o que era ser alfabetizado, portanto, não sabia o que era ser analfabeto. Assim era minha mãe.

Fez poucos comentários para concordar com meu esbravejante pai. Talvez estivesse tão perplexa como eu sobre esse mundo estranho que nós dois não conhecíamos. Dia seguinte, ainda muito calada, levou-me na escola e pediu para falar com a professora. Não me deixou entrar na sala com os outros, segurou-me firme e logo na porta começou uma discussão com a professora. Eu fui arregalando os olhos, admirado pela defesa incondicional da minha atuante mão esquerda. Não sabia se continuava olhando para a cara amedrontada da professora ou se, com o olhar, eu fizesse com que todos os colegas prestassem atenção naquilo. Meu olhar dizia tudo: Viram? É minha mãe. Aí de quem mexer comigo!

Uma mulher analfabeta conseguiu inibir os ímpetos da professora de me queimar vivo na fogueira da inquisição. Proibiu que ela fizesse qualquer comentário ou gesto para me impedir de ser canhoto. Não me lembro das “delicadezas” que ela disse para a professora, mas me senti tão protegido e tão orgulhoso que nunca mais me esqueci. Ser canhoto era uma condição e não uma escolha. Eu podia forçar e ser destro, mas minha mãe não deixou que a torturadora me transformasse em alguém diferente. Eu era canhoto e ponto final. Eu entendi que qualquer injustiça que eu viesse a sofrer, poderia contar com a minha mãe. Entendi que injustiça não era com ela.

Mais tarde, quando eu estava na quinta série do ginásio, passei a alfabetizar minha mãe. Ela se animou tanto que seguiu estudando no Mobral e depois num supletivo, a ponto de escrever seu caderno de receitas culinárias e mostrar para todos com orgulho. Fazia tricô e crochê, como sempre fez, mas agora tinha revistas para tirar os pontos que queria.

Conto primeiro esta passagem para falar de outra que aconteceu um pouco antes, quando eu tinha quatro anos. Eu quis levantar para ir ao banheiro, mas não consegui. Minhas pernas não se mexiam. Acordei meus pais, que dormiam ao lado. Era o único quarto naquele apartamento do zelador, um porão cujas janelas davam para o jardim do Edifício Itambé, bem diante do Mackenzie. Vi o pavor deles, mas lembro que fiquei tranquilo, confiante, mesmo porque não doía nada. Apenas não conseguia esticar as pernas encolhidas, duras, sem o menor sinal de que eram minhas.

Um morador do prédio logo apareceu com um fusquinha vermelho para nos levar à Santa Casa. Era de madrugada. Lá eu fui torturado por médicos que ficavam à minha volta enquanto um batia com um martelinho horrível no meu joelho. Nada dele responder com um chute na cara daqueles tiranos. Eu mostrei, para dissuadi-los da tortura, como meu dedão direito se mexia como Vicente Celestino e como o esquerdo parecia com o nascente Iê-iê-iê. Voltei para casa e fiquei ainda uns cinco dias sem mexer as pernas.

Continuei confiando nos meus pais. Eles dariam um jeito. Vi na cara deles um olhar de pena que jamais esqueci. Eles me olhavam com tanto dó e com profundos suspiros que venci a vergonha e pedi de volta a chupeta. Ela tinha sido jogada no lixo em repetidos rituais até que uns meses antes funcionou. Livrei-me, para alegria dos meus pais, da amada chupeta.

Passei a dormir na cama com minha mãe. Meu pai foi para o meu lugar. Durante o dia, imóvel da cintura para baixo, ficava na cama de casal imensa e recebendo um carinho extra e exclusivo. Melhor de tudo eram as visitas. O povo do prédio, da vizinhança, os parentes e os meus amiguinhos todos vinham em romaria. Eu escondia a chupeta, claro. Estar doente era uma festa e eu até recebia presentes.

Não sabia quando e se voltaria a andar, mas a pólio brigou com a vacina durante aqueles dias e perdeu, sem deixar sequelas. Também à noite eu tive aquela estranha vontade de ir ao banheiro e fui. Só me dei conta de que estava andando quando já tinha saído da cama. Perdi a chupeta e as visitas e os presentes. Não consigo ter lembrança ruim daqueles dias em que a paralisia infantil me rondou.

Lembro-me daquele olhar piedoso dos meus pais e da atenção que eu bem soube aproveitar. Lembro-me também que estavam lá pra tudo, incluindo a busca por uma cadeira de rodas. Para mim, qualquer coisa com rodas era uma diversão. Para meus pais, não tinha diversão alguma, mas lá estavam. E minha mãe contou essa história muitas vezes pela vida a fora. Disse que chorava, mas eu não vi. Disse que moveu o mundo atrás de solução com os médicos e, ao mesmo tempo, foi atrás da cadeira de rodas, um exagero, eu sei, mas devia ser uma forma de encarar a situação. Não vi essas coisas, só senti sua presença, pronta pra garantir felicidade em qualquer circunstância.

Bom, essas foram minhas experiências. Pelo menos as boas. Quando coloquei brinco, nos meados dos anos 80, minha mãe defendeu a pena de morte e foi meu pai que me defendeu. Ficou um sentimento de gratidão e ao mesmo tempo de admiração, sobretudo quando olho daqui pra trás. Quando vejo as mães de filhos homossexuais na Parada do Orgulho LGBT ou quando vejo mães de filhos com deficiência, mesmo quando não possuem deficiência ou não são homossexuais, acho incrível essa solidariedade. Chamam de natural, instinto materno ou outras bobagens. O que há mesmo é uma escolha.

Outro dia, para um amigo que estava passando uma situação difícil, eu o fiz lembrar que não estava sozinho e que contava com sua família. Ele deu entender que contava com eles porque eram da família. Eu, que conheço a família, bem sei que não tem nada a ver com laços genéticos. Eles compartilhavam uma escolha e não um sangue correndo nas veias. Era a escolha por serem próximos, amigos, parceiros, corresponsáveis e solidários.

Uma mãe companheira ou distante, não deixa de ser mãe, um título que recebe com a maternidade. Mãe é mãe. Mas essa mãe que escolhe estar junto, tem que ser ainda mais valorizada. Minhas homenagens a todas as mães, mas minhas homenagens especiais às mães que escolhem conviver, acolher e promover a diversidade. Elas são uma referência que muitos querem reduzir ao instinto materno, como se não fizessem nada mais do que a obrigação, mas são um sinal para toda a humanidade de que outro mundo é possível. E que maravilha quando este mundo novo começa dentro de casa.

Não estou dizendo que essas mães são exemplo de resignação ou de aceitação das desgraças que acontecem na vida. Pelo contrário, essas mães vão à luta pelo direito à diferença. Como sempre gosto de lembrar, cada um de nós é único, uma das possibilidades que a vida encontrou dentro das muitas composições possíveis. Elas entendem que a diversidade não é uma desgraça, um desvio da vida, mas a vida acontecendo e se expressando com a sua pluralidade. Não é de um amor incondicional que estou falando, também muito lindo, nada contra, mas é de um entendimento, em algum momento, de que é bacana conviver com alguém que não é como você, muito menos como você gostaria ou esperaria que fosse. E pais sabem, como sabem, esperar coisas dos filhos, que sejam assim ou assado, a cara deles ou dos sonhos deles. Por isso há escolha, nada natural, nada genético, grudado na condição de mãe.

Ah, se você é adotado e fica enraivecido pela ausência de vínculos genéticos, saiba que a melhor coisa do mundo é ser adotado, escolhido, seja pela mãe biológica ou não. Feliz dia das mães e boas escolhas!

p.s. Se você bateu no seu filho porque ele é canhoto, não precisa ficar envergonhada, basta pedir sinceras desculpas e fazer diferente, reinventar a relação. Sempre é tempo.