quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Celebre 20 de novembro!

Muitos eventos acontecem nas empresas no mês de novembro para celebrar o Dia da Consciência Negra ou o dia do herói Zumbi dos Palmares. Algumas vezes, estamos utilizando os termos escravo e negros como sinônimos, o que é inadequado e resultado de uma escolarização anterior aos anos 2000, quando passou a ser disseminado aqui conceitos mais coerentes com a postura antirracista.
Pergunte às crianças e adolescentes de hoje e eles saberão utilizar os termos corretos para expressar rejeição a estereótipos racistas. Termos ou palavras sobre um momento do passado são questões importantes se queremos gerar mudanças na realidade atual. Escravo e escravizado, negros e escravos, são exemplos de termos que precisamos conhecer melhor.
Pessoalmente, desde os anos 80, tocado pela fala de uma colega ativista dos direitos da criança e do adolescente, Regina Pedroso, criei o termo “crianças e adolescentes em situação de rua”, quando o comum era utilizar o termo “menino de rua”. Regina questionava se as crianças brotavam do asfalto, daí a inspiração para falar em “situação” para descrever algo que aconteceu em suas vidas.
Inspirado também no cuidado do movimento de pessoas com deficiência para descrever uma das características que as pessoas possuem, procuro sempre colocar o termo “pessoas” antes de qualquer outra identidade que se quer ressaltar: pessoas negras, pessoas LGBTI+, pessoas jovens, pessoas idosas... Sempre que possível, a palavra pessoa antecede a característica a ser ressaltada e fazer isso é uma maneira de lembrar que somos todos parte da família humana. É o que está escrito no artigo 1o da Declaração Universal dos Direitos Humanos: "todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos".
É uma ousadia minha e até incoerente com o que defendo: siga o movimento social que representa aquela situação a ser tratada de alguma maneira. Mas, é uma boa ousadia e vejo hoje que está bem mais aceito o termo “pessoas LGBTI+”, por exemplo, contrariando o que um colega uma vez me disse: não é a “embocadura” utilizada pelo movimento.
Escravo é geralmente utilizado como sinônimo de pessoa negra que foi escravizada. Parece ser inerente à pessoa negra a condição de escrava, naturalizando a escravidão, deixando de mostrá-la como uma imposição, uma situação, algo que aconteceu àquelas pessoas em razão de uma característica e de muitos interesses desumanos.
Quando falamos em pessoas escravizadas, a palavra sugere que alguém a escravizou e se beneficiou disso. Aliás, pode também ter defendido e mantido a escravidão mesmo sem se beneficiar diretamente do trabalho das pessoas escravizadas, se é que isso seja possível. A pessoa não é descendente de escravos, portanto, mas de pessoas escravizadas, humanos que foram escravizados por outros. Isso humaniza a questão, traz sujeitos para a conversa e desnaturaliza o que foi uma escolha do sistema econômico, cultural e até mesmo religioso, cristão ou católico.
As pessoas negras sequestradas na África e levadas ao cativeiro para exploração de variadas maneiras, um dia foram livres, tiveram uma cultura, viviam com estruturas sociais e políticas variadas, com uma história que pode ir muito além do que se mostrava na escola, antes de 2003, no capítulo sobre escravidão. A Lei 10.639, de 2003, alterada pela Lei 11.645/08, tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e particulares, do ensino fundamental ao ensino médio. Seu impacto é imenso e por isso as novas gerações estão mais familiarizadas com a abordagem antirracista.
O que diz o antropólogo Kabengele Munanga, em entrevista no Pambazuca News: “Em primeiro lugar, a existência do chamado ‘escravo’ não é razão para aceitar a escravidão. Em qualquer circunstância, a escravidão é uma instituição desumanizante e deve ser condenada. O homem (sic) nasce livre até que alguém o escravize. Portanto, o próprio conceito está errado. O correto é ‘escravizado’, não ‘escravo’. Não há uma categoria de escravo natural. Porém, este conceito já está enraizado na literatura.”
Quando falamos de Zumbi dos Palmares ou do Dia da Consciência Negra, podemos ir muito além da conversa sobre escravidão, pessoas escravizadas, a resistência e a luta pelo fim da escravidão. Lembrar Zumbi é lembrar de muito mais porque se posicionou contra a escravidão, contra o racismo, trabalhou e foi morto por defender uma sociedade que reunia as pessoas negras e não negras em outra estrutura distante da exploração baseada em senhores e servos. Zumbi é herói cuja essência de sua contribuição precisa ser lembrada e ganhar significado hoje. Assim, que ótima oportunidade para promover efetiva igualdade racial na empresa e na sociedade. Cuidado com os termos! Eles revelam nossos interesses.
Reinaldo Bulgarelli, sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação. Publicado originalmente no LinkedIn, em 16 de novembro de 2019: https://www.linkedin.com/pulse/celebre-20-de-novembro-reinaldo-bulgarelli/

sábado, 21 de abril de 2018

Valorização da diversidade e promoção da equidade de gênero nas empresas


Este artigo de 2009 não foi publicado aqui no Blog na época. Foi divulgado nos eventos dos quais participei dentro do Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça naquele ano.

Valorização da diversidade e promoção da equidade de gênero nas empresas
Rápido olhar sobre a realidade e princípios gerais para organizações que buscam qualidade nas relações de gênero.
Reinaldo Bulgarelli
Txai Consultoria e Educação[1]
14 de junho de 2009

Participei de alguns eventos sobre equidade de gênero nos últimos meses e achei interessante registrar aqui algumas reflexões sobre o tema na perspectiva da valorização da diversidade e também do mercado de trabalho, sobretudo em grandes empresas, onde a Txai tem atuado mais fortemente.

  1. Um rápido olhar sobre a realidade:
 ¤  As empresas são masculinas, masculinizadas e masculinizantes.
o   Masculinas no número:

§  Quase 90% dos cargos de liderança são masculinos (Perfil Social Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e suas Ações Afirmativas – Pesquisa 2007 - Instituto Ethos/IBOPE)

o   Masculinizadas na maneira de ser – processos, normas, regras, forma de pensar e agir, de se relacionar, de se comunicar, de eleger o que é bom para os negócios, de planejar as ações, de reconhecer o que tem qualidade e o que não tem, o que é aceitável nos comportamentos, o que é correto na maneira de falar, andar, sentir...

o   Masculinizantes na maneira de impor seu padrão dominante para todos, homens e mulheres, oprimindo e rejeitando tudo que é feminino, colonizando, assediando e querendo transformar (converter!) a todos em homens.

¤  Há um padrão dominante que se impõe e que é introjetado por todos, homens e mulheres, determinando a maneira de viver ou sobreviver nessa organização empresarial masculina, masculinizada e masculinizante.

¤  Compreender que há um padrão dominante que se impõe a todos e que as empresas são masculinas, masculinizadas e masculinizantes, deve contribuir para rejeitarmos a crítica fácil de que as mulheres que chegam em postos de comando parecem “trair” sua condição de gênero.

o   Essa crítica de que as mulheres são mais machistas que os homens, que parecem ter gosto por posturas masculinas e, assim, são “traidoras” da causa feminina, é também expressão do machismo. Parece uma crítica “profunda”, mas é ingênua e que repete uma retórica machista que faz desqualificar as mulheres que estão chegando, ainda como exceção, a postos mais altos nas hierarquias organizacionais.

o   A questão sobre quem é mais machista, o homem ou a mulher, está inserida na lógica machista e o reproduz com esse falso dilema, que se preocupa também com sua origem, geralmente atribuído às mulheres.

§  “São as mulheres que educam os homens para serem desta forma” é uma das afirmações simplistas presentes no nosso cotidiano e que mais uma vez responsabiliza as mulheres pela própria situação em que se encontram. É afirmação desrespeitosa quando sabemos que há uma ideologia machista e que ela existe na relação entre homens e mulheres. Todos, homens e mulheres, são responsáveis, assim, pela superação ou reinvenção desta maneira de se relacionar.

o   O inimigo da mulher não é o homem, mas o machismo, que prejudica a ambos numa rede de relações marcada pela imposição de um padrão dominante. Esse padrão é assimilado por todos, homens e mulheres, já que estamos mergulhados num cotidiano machista que acaba invadindo nossa maneira de ver, sentir e agir em relação às nossas características masculinas e femininas.

o   O importante não é saber quem é mais machista, mas compreender que ele está presente na sociedade em geral e também na organização quando se lida com um “piloto automático” na gestão dos negócios e dos relacionamentos com diferentes stakeholders ou públicos de relacionamento direta ou indiretamente interessados na atividade da empresa.

o   O importante é saber que essa presença do machismo gera um circulo vicioso que causa estragos na qualidade das relações entre homens e mulheres, portanto, gera relações insustentáveis.

o   É possível, desligando-se o “piloto automático”, assumir uma postura crítica e construir um circulo virtuoso que educa funcionários, suas famílias, a comunidade em geral, numa convivência de tipo novo para uma sociedade mais sustentável também neste aspecto importante da vida.

o   Os homens, heterossexuais ou não, também sofrem com o machismo. Nem todos querem seguir a mesma cartilha comportamental imposta pelo padrão dominante. Não podem chorar, expressar sentimentos, demonstrar sensibilidade, cuidados com as relações, afeto pelos colegas de trabalho, por exemplo. Quando o fazem, não são considerados firmes, fortes, sérios, competentes, enfim, justamente porque apresentam características atribuídas às mulheres.

¤  A idéia de um “teto de vidro” que oferece barreiras à mulher apenas na possibilidade dela fazer carreira numa empresa, foi substituída pela imagem de um labirinto onde a mulher enfrenta um conjunto de obstáculos relacionados à sua condição feminina e ao machismo que a despreza, desvaloriza e desconsidera.

o   Gosto de usar a imagem da teia para demonstrar como a rede de relações em que todos estamos inseridos pode funcionar para excluir, discriminar e impor um padrão dominante, criando assim embaraços, nós, enredamentos para alguns e proteção para outros.

o   Assim, não é apenas quando a mulher quer subir de posição na hierarquia da organização que passa a enfrentar problemas, mas durante toda a sua vida pelo simples fato de ser mulher.

o   A diferença em relação ao padrão dominante se torna motivo para desqualificações e desigualdades intoleráveis, o que se reflete no acesso a oportunidades, cargos, funções, salários, benefícios, educação etc.

¤  A mulher, mesmo quando incluída, no sentido de ter acesso ao mercado de trabalho, é desvalorizada, desqualificada e tudo que é feminino, suas características e necessidades específicas, representam obstáculos dentro desta lógica masculina, masculinizada e masculinizante.

o   O termo “exclusão” não diz tudo sobre a realidade da mulher no mercado de trabalho porque ela não está apenas do lado de fora, no desemprego ou alijada de determinadas atividades tidas tradicionalmente como masculinas.

o   Mesmo quando há uma integração (para não utilizar o termo inclusão), é uma integração discriminatória porque exige que a pessoa seja o que ela não é para que possa sobreviver na estrutura organizacional.

¤  Nesta lógica machista, há um “lugar” para homens e mulheres. Não cumprir com o papel de gênero esperado pode significar problemas, mesmo quando se apresentam as condições exigidas para ocupação de postos ou funções.

o   Dados do IBGE continuam demonstrando (2009) que quanto maior a escolaridade da mulher, mais sujeita ao desemprego ou a salários menores ela se encontra. Ela está “fora do lugar”, deslocada do papel que lhe é imposto, sobretudo quando é capacitada em funções tradicionalmente atribuídas aos homens, como engenharia, por exemplo.

o   O Ministro do Trabalho Carlos Luppi, comentando os resultados da RAIS (Relatório Anual de Informações Sociais do MTE), em 06 de novembro de 2008, disse o seguinte:

§  "Esse resultado demonstra que quanto maior o nível de escolaridade, mais mulheres estão no mercado de trabalho. O dado negativo é que mesmo assim, com melhor escolaridade e por estar em número maior nesta faixa, ela ganha bem menos do que o homem. O que é uma prova de que ainda temos discriminação no país. O importante da Rais é que ela faz uma radiografia real, mostrando inclusive os preconceitos ainda existentes“. Ministro Carlos Lupi, durante a coletiva de apresentação do resultado da RAIS 2007 em 06/11/2008.

o   Esses dados da RAIS, entre outros, revelam que há um discurso falacioso de que o problema é social, quando há preconceito e essa ideologia machista determinando a lógica de funcionamento do mercado em relação à mulher. O Ministro, acertadamente, fala em preconceito e oferece pistas para a atuação das empresas na promoção da equidade de gênero.

o   Essa situação retira eficiência da sociedade porque as mulheres são maioria, possuem mais anos de estudo que os homens, entre outras qualidades que deveriam, pela lógica do mercado atual, ser valorizadas.

§  A retórica da meritocracia não sobrevive às questões de gênero. Dentro da lógica atual, o melhor deveria contar com reconhecimento, mas isso não acontece e o padrão dominante – branco, masculino, entre 30 e 40 anos, sem deficiência, heterossexual, entre outros atributos, acaba sendo privilegiado.

o   As questões de gênero ou o enfrentamento do machismo transcende os modelos de produção até aqui criados, o que exige fôlego de todos que assumem compromisso com relações de gênero respeitosas e equânimes.

§  Sueli Carneiro, importante militante da questão de gênero e raça, afirmou na Revista Caros Amigos que “entre a esquerda e a direita, continuo preta”. O mesmo é válido para as mulheres, entre outros segmentos não assemelhados ao padrão dominante.

o   Mais uma vez é preciso afirmar também que o inimigo da mulher não é o capitalismo, mas o machismo. Não se deve esperar a superação do capitalismo, imaginando que automaticamente estaria extinto o machismo.

§  É uma “idéia paralisante”, daquelas que invalidam agir no aqui e agora das contradições desta sociedade.

§  É também uma idéia autoritária porque impõe que as mulheres tenham paciência e se resignem, se conformem à situação atual enquanto o mundo novo não acontece. O mundo novo ou mulher melhor acontece com a participação das mulheres aqui e agora!

¤  Há, além das idéias paralisantes, as idéias paralisadas. Elas impedem perceber, até mesmo do ponto de vista dos negócios ou da atividade empresarial em geral, que as mulheres estão assumindo novos papéis, que a imagem da “sagrada família” congelada e deturpada pelo machismo, não corresponde há muito tempo à realidade.

o   Faze parte deste conjunto de mudanças perceber que as famílias atuais são cada vez mais plurais na sua constituição, com papéis parentais variados e responsabilidades distribuídas de maneira bem diferente daquela congelada no imaginário da sociedade.

§  Faz muito tempo que os arranjos familiares já não correspondem a esta imagem de uma estrutura familiar rígida de pai, mãe, filhos, avós, tios. Há dois ou mais pais, mães, avós, casais do mesmo sexo, enfim, uma pluralidade de arranjos que precisam ser considerados na definição de políticas, de estratégias de comunicação, marketing, oferta de produtos e serviços.

§  Nesta linha, ainda há gestores que, diante de uma crise, preferem demitir mulheres porque elas não são “chefes de família”, desconhecendo os dados da realidade brasileira que colocam a mulher em número cada vez maior nesta função.

§  Empresas que desvalorizam a mulher a ponto de preferir sua demissão à de homens, não são tão raras e, no computo geral, causam graves problemas de eficiência à sociedade toda, agravam problemas sociais, corroem o mercado interno, geram impactos negativos para os próprios negócios.

§  Mulheres que ganham mais que seus parceiros ou que assumem a liderança da família em termos de definição do local de moradia, entre outros aspectos, já não é algo tão raro na sociedade brasileira. No entanto, ainda há empresas nas quais as mulheres não podem colocar seus companheiros no plano de saúde, por exemplo, talvez com base nesta idéia paralisada de que eles é que as sustentam, de que eles são provedores e elas providas por homens, sejam maridos ou pais. É uma questão de isonomia que precisa ser considerada.

§  Há empresas que insistem em colocar o corpo da mulher como forma de vender seus produtos, desconhecendo que são elas compradoras ou quem define a compra por este ou aquele produto ou serviço.

  1. Há mudanças em curso, mas são lentas demais.

¤  Há homens que já começam a se dar conta de que empresas masculinas, masculinizadas e masculinizantes exigem, por exemplo, sua total dedicação ao trabalho, às atividades produtivas, o que lhes proporciona o acesso mais “natural” a postos de liderança, entre outros aparentes benefícios.

o   Estes homens percebem que essa maneira de da organização funcionar, fruto de escolhas, também os alijou da vida familiar e de outras dimensões da vida pessoal para além do trabalho. Reclamam que não acompanham o desenvolvimento dos filhos ou, com maior tristeza, que não viram os filhos crescerem.

o   Ainda são minoria, mas são homens que começam  a trazer a agenda antes apenas feminina ou feminista para o meio empresarial. Pelo poder que possuem, por serem homens, são mais ouvidos e sua queixa tende a produzir um repensar neste padrão de divisão dos papéis de gênero: homem trabalham, são provedores do lar e mulheres cuidam da casa e dos parentes; o espaço público é dos homens e o privado é para as mulheres etc.

o   Homens de diferentes idades estão começando a pressionar as empresas para se reinventarem na maneira de organizar as atividades produtivas.

§  Empresas já encontram dificuldades para atrair talentos masculinos mais jovens por conta do item “qualidade de vida”, o que tem pressionado mudanças, mas os componentes de gênero dessa agenda ainda não são percebidos pelos gestores empresariais.

§  Homens mais velhos também começam a oferecer resistência para ocupar postos de liderança quando isso significa suprimir a vida pessoal. O privilégio da liderança e seus benefícios em detrimento da qualidade de vida já começa a ser considerado como algo ruim para alguns homens.

o   A solidariedade com as mulheres não é automática ou fácil. Apesar da percepção de que algo não está correto nesta forma de organizar a vida empresarial, ainda são homens e mulheres pensando separadamente suas questões quando a efetividade desta agenda de mudanças está na união de esforços.

§  Na Txai, estimulamos que as empresas criem grupos de funcionários para tratar de questões de gênero, mas ainda é difícil convencer que estes grupos sejam constituídos por homens e mulheres. Este lugar dos grupos de segmento, afinidades ou diálogo é propício para a união de esforços e busca conjunta de soluções que atendam a todos, considerando as especificidades.

§  A desconstrução do modelo atual ou a reinvenção das relações de gênero não se dará pela agenda em comum se ela assim não for percebida e discutida num plano mais amplo. É de grande ajuda quando essa agenda não é levada apenas como reivindicação que beneficie um segmento da população, mas quando é propositiva para melhorias na organização empresarial, alinhada com sua identidade e estratégias.

o   De acordo com o IBGE no estudo “Tempo, trabalho e afazeres domésticos: um estudo com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2001 e 2005”, homens mais escolarizados têm maior participação nas tarefas domésticas. Esta participação dos homens nas tarefas reprodutivas (cuidar da casa, dos filhos, da roupa, da alimentação, da higiene etc.), significa uma verdadeira revolução que liberta mulheres e também os homens em vários campos da vida.
§  Segundo o IBGE, “a crescente participação das mulheres no mercado de trabalho não reduziu a jornada delas com os afazeres domésticos. Pelo contrário, na faixa etária de 25 a 49 anos de idade, onde a inserção das mulheres nas atividades remuneradas é maior e que coincide com a presença de filhos menores, o trabalho doméstico ocupa 94,0% das mulheres. No país, 109,2 milhões de pessoas de 10 anos ou mais de idade declararam realizar tarefas domésticas; sendo que, deste conjunto, 71,5 milhões (65,4%) são mulheres e 37,7 milhões (34,6%) são homens.”

§  Na população masculina, ainda segundo o IBGE, quem mais realiza tarefas em casa são os mais escolarizados (54%), enquanto que para as mulheres ocorre o inverso.
§  Nem a aposentadoria representa maiores oportunidades para os homens se dedicarem às atividades do lar. Segundo o estudo do IBGE, “também pode-se deduzir que a aposentadoria permite aos homens se dedicarem mais a estas atividades. São os homens de 60 anos ou mais de idade que dedicam maior parte do seu tempo nestes afazeres (13 horas semanais). Do lado feminino, o trabalho doméstico consome mais tempo na faixa dos 50 a 59 anos de idade, chegando a 31 horas semanais, cerca de 3 vezes mais que o tempo dedicado pelos homens de mesma idade.”
o   Estes dados fazem pensar também sobre a questão racial presente na sociedade brasileira, que atribui à mulher negra o papel de cuidar também da casa alheia. A maioria das empregadas domésticas é negra, o que não é coincidência, mas fruto da combinação machismo-racismo produzindo um circulo vicioso em que estas mulheres estão inseridas há séculos.
§  No trabalho doméstico a mulher negra está sujeita a baixos salários, precariedade em relação a seus direitos e vulnerabilidades variadas em relação à sua dignidade. Há famílias em que a avó, filhas e netas estão inseridas neste circulo vicioso que impacto a educação das novas gerações e, portanto, o projeto de vida de todos.
§  Pensando nas estratégias de enfrentamento das iniqüidades de gênero nas empresas, é fundamental considerar transversalidades como idade, orientação sexual, deficiência, raça/cor, regionalidades, uma vez que fazem toda diferença na qualidade dos resultados.
§  Ser mulher é um dos marcadores identitários, que deve ser percebido, portanto, na sua complexidade em relação a outros marcadores que enriquecem a visão sobre a realidade e a qualidade das ações de valorização da diversidade.
¤  A importância das ações afirmativas:

o   As mudanças são lentas demais e precisam de ações afirmativas para corrigir e acelerar o processo. São 40 anos de presença da mulher branca no mercado de trabalho e já era tempo da equidade de gênero ser uma realidade.

§  A mulher negra, desde a escravidão, sempre teve uma presença significativa no mercado de trabalho formal ou informal, sobretudo nas posições mais vulneráveis e precárias.

§  O argumento de que não houve tempo para formar uma liderança feminina é estranha e coloca a responsabilidade da situação no desempenho da mulher, quando há um problema com o machismo, discriminação e, portanto, problema no desempenho das empresas ao fazer negócios numa sociedade na qual mais de 50% da população é constituída de mulheres.
§  O Brasil fica na 100ª posição entre 130 economias num índice de desigualdade salarial entre homens e mulheres (Fórum Econômico Mundial, 2008). Segundo o estudo, as mulheres receberiam até 42% a menos que os homens por trabalho similar no país. A Noruega, Finlândia e Suécia são os melhores países em termos de igualdade do gênero.
§  O Fórum Econômico Mundial afirma que, quanto maior é a participação das mulheres na vida econômica de um país, mais desenvolvido ele é.
o   As mulheres são maioria na sociedade, têm melhor desempenho na educação, estão presentes em cursos dos mais variados (técnicos ou de nível superior) e já são quase 50% da população economicamente ativa. Há capital humano no país para que seja realizada essa transformação na demografia interna das empresas.

o   O perfil das vagas está cada vez mais feminino. Exige-se capacidade de comunicação, responsabilidade social, sensibilidade, competências emocionais, cuidado com o todo, gestão dos impactos etc. Há o risco até de feminizar a gestão e desequilibrar novamente, o que é não é a perspectiva da diversidade, mas o machismo faz com que a escolha seja sempre pelos homens, não reconhecendo qualidades nas mulheres, mesmo as mais preparadas.

o   A lenta transição para inclusão da mulher no mercado de trabalho e promoção da equidade de gênero (duas faces da mesma questão) está passando por atitudes ainda machistas de atribuir à mulher as funções “delicadas”, enfim, que reforçam os estereótipos de gênero. É a “guetização” do trabalho feminino, o que não é bom para as mulheres, para os homens, para as empresas e para a sociedade.

§  O que é relacionado ao cuidado é reconhecido como “próprio” para as mulheres e as atividades oferecidas são como que uma extensão das atividades do lar.

§  A idéia central, defendida pela OIT (Organização Internacional do Trabalho/ONU) é que não há atividade masculina ou feminina, ou seja, atividades próprias para mulheres e para homens.

o   Há mulheres, não apenas homens, que boicotam os programas empresariais de ação afirmativa que visam promover sua ascensão na carreira. É o machismo fazendo seus estragos. Dizem elas que querem ser reconhecidas pela competência profissional e não por serem mulheres.

§  Quando encontro esse discurso, pergunto se alguém já viu um homem em crise, os 90% que atualmente ocupam os postos mais altos nas empresas, querendo saber se foram promovidos por serem competentes ou por que são homens. Sabemos a resposta: foram promovidos por serem homens. Ser competente é outra informação que deve ter sido considerada, mas não é a determinante senão teríamos um número bem maior do que os 10% atuais nestes lugares de liderança.

§  Ser mulher é uma característica a ser considerada como motivo para contração ou promoção porque isso é justo, faz bem para a empresa e para a sociedade. Ou seja, a composição mais equilibrada do quadro de funcionários de uma empresa se torna uma competência organizacional, algo fundamental para a relação da empresa com seus diferentes públicos no cumprimento de sua missão institucional.

§  Essa tentativa de retirar da vida profissional da pessoa uma característica tão significativa como ser homem ou ser mulher é uma face cruel do machismo. Ser homem ou ser mulher, assim como toda e qualquer outra característica da vida humana, deve ser considerada em tudo que somos e fazemos.

o   Empresas que realizam ações afirmativas para promoção da equidade de gênero trazem para dentro da organização aprendizados interessantes para os negócios, para a leitura da realidade onde operam suas atividades e para a realização de várias outras medidas que expressam compromisso com direitos humanos universais e o desejo de mudar a realidade, não apenas se conformar a ela.

§  O extremo educa! Por meio das ações de valorização da diversidade, como a promoção de equidade de gênero, cria-se um ambiente de aprendizagem em que as diferenças e semelhanças são consideradas como riquezas e não problemas. Essa aprendizagem gera atenção maior para pequenas e grandes questões que afetam clima, cultura, demografia interna, entre vários outros aspectos da vida organizacional. Se não sabemos lidar com diferenças de gênero, qual a abertura que se tem para lidar com diferenças de opinião, outras idéias, perspectivas e possibilidades na solução de problemas ou no planejamento das ações?

    III.            Crenças e princípios básicos para promoção da equidade de gênero

¤  A valorização da diversidade é uma atitude, uma forma de olhar e agir sobre a realidade que, por princípio, vai sempre privilegiar o que é mix ou heterogêneo. É o melhor jeito de viver, de ser e de realizar nossas atividades no mundo.

o   Não basta apenas incluir a mulher, é preciso ouvi-la, considerar as características, visões, interesses, perspectivas, demandas para que a organização não seja apenas masculina, masculinizada e masculinizante.

o   Não se trata de substituir o padrão dominante (apenas mulheres no poder!), mas de transformar relações e estruturas para que sejam, na demografia, na maneira de ser, olhar, pensar, planejar e agir, tão femininas quanto masculinas.

o   Homens e mulheres precisam e podem cooperar, trabalhar juntos para o sucesso da organização e da sociedade.

o   Promoção da equidade de gênero supõe inclusão e esta supõe qualidade das interações, além de garantias no acesso às oportunidades. A qualidade das relações de gênero é expressão de uma organização sustentável e que contribui para o desenvolvimento sustentável.

§  Não se pode paralisar um processo de promoção da equidade de gênero em nome de uma suposta perfeição na qualidade da inclusão – idéias paralisantes! É um processo que envolve aprendizados na convivência, reflexão sobre a prática, sobre o cotidiano onde acontecem as interações entre homens e mulheres.

¤  O inimigo da mulher não é o homem, mas o machismo, uma ideologia a serviço de manter um segmento subordinado ao outro em estruturas de poder político, econômico e cultural que aparentemente beneficiam os homens. O machismo não beneficia ninguém e sobreviver nesta ideologia gera custos imensos às pessoas, organizações e à sociedade.

o   O machismo, como ideologia, alimenta e é alimentado por processos de desqualificação, desvalorização, desconsideração da mulher, ou seja, comportamentos de violência física e psicológica que afetam a qualidade das relações. É uma relação insustentável para homens e mulheres!

¤  Organizações tão masculinas quanto femininas são mais sustentáveis e trabalham para o desenvolvimento sustentável da comunidade local, dos países e do planeta.

¤  Dados do Fórum Econômico Mundial – Empoderamento das Mulheres, 2005, entre outros estudos nacionais e internacionais, demonstram que o investimento em equidade de gênero tem impacto positivo no PIB dos países e, evidentemente, na formação de uma cultura mais inclusiva, favorável ao desenvolvimento sustentável.

o   A desigualdade atual: “Em todo o mundo, desconsiderando o setor agrícola, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento, mulheres ainda ganham menos de 78% da remuneração paga a homens pelo mesmo trabalho, uma disparidade que insiste em persistir, mesmo em países mais desenvolvidos.” Empoderamento das Mulheres, 2005.

o   Há uma preocupação crescente com o mercado interno em tempos de exportações cada vez mais difíceis. Neste mercado interno e na base da pirâmide do país há um significativo número de mulheres que podem alimentar um circulo virtuoso de desenvolvimento se houver equidade de gênero. No momento atual, o desprezo pelo feminino gera uma barreira ao próprio desenvolvimento do país, ferindo princípios de direitos humanos universais e a dignidade das pessoas.

¤  Uma organização é inclusiva quando nelas as mulheres não precisam escolher entre a carreira ou a família, quando o que é da natureza não é transformado em problema e o que é construído nas relações sociais não é naturalizado e perpetuado sem qualquer crítica às estruturas que geram violência e exclusão.

o   Estudo da OIT (Custos do Trabalho de Homens e Mulheres na América Latina: Mitos e Realidade, de Laís Abramo, atual diretora do escritório da OIT no Brasil), concluiu pela necessidade de promover maior equilíbrio entre trabalhadores de ambos os sexos.

o   Diz Laís, em entrevista à Revista BOVESPA: “De fato, as mulheres estão entrando no mercado de trabalho com força cada vez maior. Mas o grande problema é que ainda são vistas como as principais responsáveis pelos cuidados com a casa e os filhos. Ainda não aconteceu uma divisão mais equilibrada de responsabilidades familiares entre homens e mulheres. Apesar de ingressar no mercado de trabalho, a mulher continua sendo responsável pela administração da casa, dos afetos, dos cuidados domésticos. Os homens ainda não assumiram seu papel nesta esfera. É importante que isso seja repactuado, que a empresa seja um ambiente mais favorável para esta articulação entre o trabalho e as outras dimensões da vida e haja políticas de reconciliação entre o trabalho e a vida familiar que permitam tanto ao homem quanto à mulher uma vida mais equilibrada. Existe uma visão de que o custo de contratação das mulheres seria mais elevado, o que justificaria o fato de seus salários serem mais baixos. Na verdade, isto é um mito: quem paga as despesas com licença-maternidade, e a maioria dos outros custos ligados à reprodução não é a empresa, mas a Previdência. Pesquisa feita em cinco países da América Latina constatou que o custo adicional da contratação das mulheres é irrelevante e não pode justificar os salários menores.”

¤  Uma organização é inclusiva quando promove equidade de gênero e isso significa envolver homens na reflexão sobre seu papel na empresa e na família, buscando atitudes mais responsáveis no trato de questões da vida ou das tarefas reprodutivas.

o   Quanto mais os homens participam das tarefas relacionadas à casa, à família, mais humanizam a empresa. As estruturas, hoje baseadas na liberação total do homem para se dedicar ao trabalho, o que favorece sua carreira, cederão lugar para uma empresa mais próxima da vida real em termos de sua demografia, comportamento, atitudes e procedimentos.

¤  O aparente sucesso de homens numa estrutura masculina, masculinizada e masculinizante se deve ao fato de serem homens e não apenas à sua competência, o que precisa dar lugar a critérios mais objetivos de promoção e construção de uma organização competente.

o   Ser mulher numa empresa é uma característica a ser considerada no conjunto de competências e qualificações de que a organização necessita para fazer negócios num país com homens e mulheres.

¤  Organizações que promovem equidade de gênero estão construindo uma competência organizacional com diferenciais competitivos e significativos para lidar com um mundo também diverso e com valores que estão cada vez mais próximos do respeito à diversidade.

¤  O sentido da promoção da equidade de gênero é o de ampliar as possibilidades de cooperação entre homens e mulheres na construção de vidas, organizações e países mais sustentáveis.

o   É mais do que apenas ter um lugar reservado pela justiça, mas um processo de inclusão baseado em valores universais de direitos humanos que supõem trabalhar intensamente e a qualidade das interações para que gerem benefícios a todos no enfrentamento dos desafios da vida.

o   É a construção de espaços de interação criativa em torno do desafio comum do desenvolvimento sustentável, no qual homens e mulheres podem trocar, aprender uns com os outros, ampliar sua sensibilidade para considerem aspectos de gênero em tudo que são e fazem, ampliando também a sensibilidade da empresa e da sociedade.

¤  Não há melhor lugar do que a empresa para se reverter a lógica atual de desprezo pelo feminino e reconstruir relações de gênero baseadas na valorização da diversidade. É um espaço educativo, de aprendizados importantes para a vida e para influenciar processos educativos na sociedade, na rede de relações em que as organizações estão inseridas. Apostar na equidade de gênero é apostar na empresa e no desenvolvimento sustentável, com tudo que isso implica para a maneira de ser empresa e ser sociedade nos tempos atuais.

O que fazer diante concretamente nas empresas diante destas reflexões sobre a realidade e o conjunto de princípios aqui definidos? É tema para outro artigo, apesar das muitas pistas presentes neste texto. Para adiantar, vale a pena conhecer dois documentos:

·       O compromisso das empresas com a valorização da mulher, do Instituto Ethos. Link: http://www.uniethos.org.br/_Uniethos/Documents/valoriz_mulher.pdf

O Brasil ainda não ratificou a Convenção 156, mas há empresas trabalhando na direção de maior equilíbrio entre vida pessoal e trabalho envolvendo homens e mulheres neste desafio. Conhecer o texto da Convenção pode auxiliar no entendimento da temática, contribuir para ações empresariais sintonizadas com o que há de mais avançado na discussão e acelerar o processo de ratificação no país.




[1] Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação que atua no campo da sustentabilidade e responsabilidade social empresarial. É autor do livro “Diversos Somos Todos”, Editora de Cultura.