A
promoção da igualdade racial pelas empresas
Publicado em 30/1/2013 no site do Instituto Ethos: http://www3.ethos.org.br/cedoc/a-promocao-da-igualdade-racial-pelas-empresas/#.UQ0fPSBTv3g
Neste
artigo, o educador Reinaldo Bulgarelli enfoca os desafios atuais e as
possibilidades para práticas socialmente responsáveis relacionadas ao tema.
Por Reinaldo Bulgarelli*
O movimento de responsabilidade social empresarial no Brasil já nasceu
com uma agenda envolvendo a questão racial. O Instituto Ethos, desde a sua
criação, trouxe para a sociedade brasileira a reflexão sobre a importância de
as empresas abordarem o racismo, com foco na questão do negro. Mais do que
isso, apresentou uma proposta de abordagem prática do tema por meio dos
Indicadores Ethos, apoiados por um conjunto de publicações que orientam as
empresas.1
Com essa atuação, o Instituto Ethos aproximou das empresas os ativistas
na causa antirracismo e vice-versa, estimulando novos projetos e atividades das
mais variadas no campo das ações promotoras de igualdade racial.
Algumas lições, em meio a desafios e possibilidades, podem ser colhidas
neste momento, sobretudo após uma década, no mínimo, de envolvimento das
empresas com a temática racial.
1. O Estado brasileiro está mais adiantado do que as empresas ao pensar
o tema do racismo, ao assumir que o país é racista e ao propor legislações
inclusivas, que promovem direitos e reparam os históricos e persistentes
prejuízos aos negros.
2. É evidente que, diante desse atraso, as empresas terão de realizar
mais esforços em prol da igualdade racial. Os dados da demografia interna das
empresas, como o exemplificado no Perfil
Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações
Afirmativas 2, demonstram uma distância inaceitável entre
negros e não negros.
3. A tendência é que o Estado tome medidas para acelerar os resultados
no campo da inclusão do negro no mercado de trabalho, o que pode envolver o
estabelecimento de cotas, dada a gravidade da situação. Assim, mesmo que a
atuação mais efetiva das empresas seja importante, o tempo que já foi perdido
com indiferença, negação da realidade, rejeição a ações afirmativas e ações
tímidas e ineficazes faz com que a correção do Estado seja urgente. Uma parcela
significativa da sociedade está exigindo ações por parte do Estado, e este, não
apenas o Governo Federal, vem demonstrando apoio e iniciativas na direção das
ações afirmativas, incluindo as cotas.
4. As empresas, dessa forma, precisam se capacitar urgentemente para
compreender melhor a situação e agir sobre essa realidade, assimilando a
possível legislação de cotas de maneira a adicionar valor a todos, incluindo os
resultados nos negócios. Devem agradecer o apoio, caso a medida das cotas se
concretize, diante da sua incapacidade para lidar com o tema por conta própria.
O mesmo vem acontecendo com a legislação de cotas para inclusão de pessoas com
deficiência e de jovens (legislação da aprendizagem). Algumas empresas já
assimilaram as medidas, aprendendo com elas e tornando-as fonte de
aprimoramento no relacionamento com cerca de 46 milhões de brasileiros, segundo
dados do Censo do IBGE de 2010. No caso da população negra, estamos falando de
51,3%, o que representa mais de 100 milhões de pessoas, segundo a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) publicada pelo IBGE em 2012.
5. A realidade do país quanto ao acesso do negro à universidade melhorou
muito nos últimos anos, o que contribui para que os dados atuais de acesso a
emprego e carreira no mercado de trabalho sejam inaceitáveis. A educação é um
fator determinante para o sucesso no mundo do trabalho. Segundo o IBGE, na Síntese
dos Indicadores Sociais 2012, o acesso ao nível superior “cresceu de 27,0%
para 51,3%, entre 2001–2011, sendo que, entre os estudantes negros ou pardos
nessa faixa etária3, a proporção cresceu de 10,2% para 35,8%”.4
Com um número três vezes maior de negros em relação a 2001, é intolerável que
os dados do mercado de trabalho não revelem o aproveitamento dessa oferta de
trabalhadores qualificados, demonstrando que há outros fatores interferindo nas
escolhas das empresas. Portanto, a educação sozinha, sem ações afirmativas por
parte do mercado de trabalho, não tem sido capaz de promover para os negros a
mesma ascensão e benefícios dos que não são negros.
6. No âmbito das empresas, as ações afirmativas precisam adquirir maior
amplitude e efetividade. São tímidas em relação à promoção da igualdade racial
e, diante de tamanho desafio, precisam ser avaliadas para que se identifiquem
problemas e se ganhe maior efetividade. É preciso ampliar os espaços de
reflexão sobre o tema no próprio movimento de responsabilidade social
empresarial. Dentro das empresas, é preciso maior envolvimento da alta
liderança, com programas mais robustos em termos de beneficiados, estratégias e
recursos.
7. É preciso enfrentar conceitos que persistem e que não têm ajudado as
empresas a sair da situação atual. Existe a ideia de que no Brasil não há racismo,
que “o problema é social e não racial”, entre outras abordagens que apenas
reforçam a certeza sobre a presença exuberante do racismo, criando impactos
negativos na gestão empresarial.
8. Para garantir melhores resultados, é preciso ampliar significativamente
o número de ações afirmativas nas empresas, sobretudo nas maiores. Elas têm uma
influência na cadeia de valor que permeia todo o mercado de trabalho, mas é
importante frisar que também precisam aprender com as pequenas e médias
empresas, cujos dados sobre inclusão do negro seguem outros padrões de
comportamento.
9. As empresas devem explicitar que as ações afirmativas se devem aos
impactos negativos causados pelo racismo na sociedade e visam corrigir os
problemas, reaproximar a organização do segmento negro e reparar o prejuízo que
têm com a ausência deste, uma vez que operam seus negócios numa sociedade em
que a maioria da população se autodeclara negra. São argumentos racionais,
dentro da lógica empresarial, que também compreendem a linguagem dos valores e
da necessária sintonia com a identidade organizacional, além do compromisso
para com o desenvolvimento sustentável. Impactos negativos na reputação têm
custado caro a muitas empresas, que podem não aparecer no Índice Dow Jones de
Sustentabilidade (DJSI), no Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE)
BM&F Bovespa ou no Guia Você S/A-Exame das Melhores Empresas para Você
Trabalhar, por exemplo.
10. É preciso evitar discursos que, usando como justificativa as
deficiências de formação da população negra, apenas fortalecem o racismo.
Também a empresa tem “deficiências de formação” quando não sabe identificar
qualidades naquilo que é diferente dos brancos e quando se afasta de mais de
50% da população, gerando alto impacto negativo na constituição de suas
equipes, no acesso a talentos, nos negócios com a nova classe média e em outros
espaços com maior presença da população negra. As ações afirmativas existem
para corrigir um problema na sociedade e na organização e para acelerar
resultados na promoção da equidade, retirando barreiras que impedem a empresa
de acessar seus talentos por causa do racismo, e não apenas da falta de
qualificação profissional dos negros. Todos os brancos, majoritariamente
presentes nas empresas e nos cargos de liderança, são tão mais qualificados que
os negros ou há maior tolerância com a qualidade de sua formação educacional e
profissional?
11. Nossas empresas são brancas (no número de trabalhadores e líderes),
branqueadas (nos rituais) e branquejantes (na pressão para que todos sejam
brancos), com estruturas, sistemas e processos que refletem o nível de
influência do racismo nas práticas de gestão. Logo, é importante haver uma
revisão, a fim de que a composição das equipes, a comunicação com seus
diferentes públicos, os produtos, serviços e demais práticas que interessam à
sobrevivência da empresa no mercado sejam tão brancos quanto não brancos.
12. Ações afirmativas que não se apresentam como meio de enfrentamento
do racismo e que evitam essa palavra, postura e práticas antirracistas são
equivocadas. Um dos fatores que podem contribuir para os tímidos resultados
observados no mercado de trabalho é que há empresas que se recusam a falar do
racismo e a enfrentá-lo. Entendem que basta oferecer oportunidades por meio de
alguns programas para resolver o problema. Essas ações precisam ser
acompanhadas de um entendimento da questão das relações raciais no país, da
questão do racismo, de suas formas de expressão no ambiente de trabalho, da
relação com diferentes públicos.
13. É preciso conhecer melhor a legislação do país e as possibilidades
de gestão da questão racial por parte das empresas, perguntando aos candidatos
à vaga sobre seu pertencimento étnico-racial, por exemplo. A autodeclaração é
uma ferramenta para essa gestão, apesar de seus limites, mas ainda há empresas
que rejeitam o cumprimento da legislação, como a que trata do Relatório Anual
de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego. É de
interesse legítimo da sociedade que as empresas gerenciem as informações sobre
sua demografia interna em relação a raça ou cor.
14. É preciso aprimorar os programas de ação afirmativa, porque, além de
tímidos, podem estar cometendo equívocos, como a criação de grupos de
estagiários negros. Além de tímidos em número, os programas dessa natureza em
geral funcionam de maneira paralela às práticas de gestão, não geram
aprendizados para a organização e revelam baixa efetividade no aproveitamento
dos estagiários em seus quadros, entre outros problemas. Uma saída, a partir do
princípio da promoção da igualdade racial com ações afirmativas para acelerar
resultados efetivos e aprendizados para todos, seria garantir um percentual
para estagiários negros no programa de estágio da empresa. Se há defasagem em
relação às exigências da empresa, o que nem sempre se confirma, ela poderia ser
resolvida no próprio programa de estágio, e não nesses programas paralelos.
Além disso, a falta de entendimento da questão racial tem levado algumas
empresas a ter estagiários não negros até mesmo nesses programas ditos de ação
afirmativa para negros, o que é preocupante. Teme-se que algumas pessoas da
liderança dessas empresas usem tais programas equivocados para justificar que
agiram e mesmo assim não obtiveram resultados, e que, portanto, o problema é do
negro e de sua formação educacional. O problema jamais será da empresa e do
racismo vigente, muito menos de seus profissionais “bem-intencionados” e seus
métodos “altamente eficazes”.
15. Não há valorização da diversidade sem a realização de ações
afirmativas. Também não é possível realizar ações afirmativas sem explicitar o
posicionamento contra o racismo e sem agir sobre ele para além da oferta de
oportunidades. Aspectos culturais e medidas concretas no âmbito da gestão, dos
processos internos e do relacionamento com os diferentes públicos, ou stakeholders,
precisam ser combinados para que as empresas ganhem maior efetividade e ajustem
o passo com as demandas da sociedade civil e do Estado brasileiro.
As grandes empresas souberam enfrentar desafios gigantes em vários
campos para se tornarem amplas e atuantes até o momento. Portanto, elas saberão
enfrentar o desafio da promoção da igualdade racial. É uma exigência, mais do
que uma esperança.
* Reinaldo Bulgarelli é
sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação.
Crédito da foto: Clóvis Fabiano
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Notas
1 As publicações mais diretamente relacionadas à
questão racial são Perfil
Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas do Brasil e Suas Ações
Afirmativas e O
Compromisso das Empresas com a Promoção da Igualdade Racial. Indiretamente,
o tema é também abordado nas publicações Diversidade
e Equidade – Metodologia para Censos nas Empresas, Como
as Empresas Podem e Devem Valorizar a Diversidade e Empresas
e Direitos Humanos na Perspectiva do Trabalho Decente. Além disso,
dentre os eventos realizados pelo Instituto Ethos, um deles foi comentado no
artigo As
Ações Afirmativas das Empresas pela Igualdade Racial, do
presidente Jorge Abrahão.
2 Veja também dados do Ministério do Trabalho
Emprego, IBGE, Ipea e Dieese, entre outros, sobre desemprego, salário/renda,
carreira e aspectos relacionados ao mercado de trabalho.
3 A faixa etária a que se refere o IBGE é de 18 a 24 anos, ou seja, não
são consideradas as pessoas com mais de 24 anos e o dado não trata do número
total na população brasileira de pessoas com nível universitário.
4 Síntese
dos Indicadores Sociais 2012, com dados referentes a 2011, divulgada em
novembro de 2012.